quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

Para quem deseja entender os argumentos da “esquerda da esquerda”, recomendo a leitura do texto “Por que a esquerda socialista terá poucos votos nas eleições de 2014?”, de Valério Arcary.


O principal defeito da “esquerda da esquerda” está resumido na citação que abre o texto de Arcary: “se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”. Vamos por partes.

Arcary antecipa que os “candidatos da esquerda socialista, Zé Maria do PSTU, Luciana Genro do PSOL e Mauro Iasi do PCB, irão, muito provavelmente, ter poucos votos nas eleições de outubro de 2014”. Não sabemos por qual motivo o PCO não é incluído na lista.

Arcary reconhece que “já são doze anos desde a eleição de Lula, um tempo grande o bastante, aparentemente, para que uma experiência e balanço político possam ser feitos”. Mas não tira a conclusão óbvia: a maior parte da classe trabalhadora faz um balanço desta experiência. Os que a consideram negativa, optam majoritariamente por candidaturas da oposição de direita. E os que a consideram positiva, optam majoritariamente por votar em Dilma e no PT.

Arcary chega perto desta conclusão ao admitir que a baixa votação da “esquerda da esquerda” se relaciona “com o crescimento vertiginoso da candidatura de Marina Silva”, que na sua opinião “vem conseguindo ocupar, simultaneamente, o espaço da oposição de direita e de esquerda ao governo de coalizão liderado pelo PT, e representado por Dilma Roussef, deslocando Aécio Neves, e bloqueando uma alternativa à esquerda”. Ou seja: prestidigitação verbal à parte, ao menos neste momento, quem se decepciona com o PT busca uma alternativa à direita do PT.

Arcary sabe que as consequências deste raciocínio são letais para a “esquerda da esquerda”. Por isto, é obrigado a pegar leve com o significado da candidatura Marina Silva, afirmando que “o discurso da terceira via (...) encontra respaldo entre aqueles que esgotaram suas expectativas em relação ao PT, mas não querem o retorno aos anos noventa com os governos do PSDB”. Ou seja, Arcary discute os motivos de parte dos que votam, não a candidatura em si de Marina Silva.

Arcary não denuncia como deveria a candidatura de Marina Silva como instrumento da direita, do oligopólio e do capital financeiro, como plano B do grande capital. Ele prefere apresentar esta candidatura como “mais uma mediação. Mais uma posição intermediária. Mais uma armadilha. A terrível pressão das ilusões na possibilidade de regulação de um capitalismo sem corrupção, de um capitalismo sem exploração selvagem”. Ironicamente, as posições de Arcary a respeito de Marina lembram as posições de alguns setores do PT, como o senador Suplicy e o governador Jaques Wagner.

Arcary, quando chega perto de denunciar o caráter de classe da candidatura Marina, o faz de maneira extremamente suave: “Uma candidatura que captura para uma saída moderada, amigável para a Avenida Paulista, o impulso de Junho. Uma nova versão do papel representado, tragicamente, pelo “Lulinha paz e amor” , só que agora, talvez, em forma de farsa. O feitiço se voltou contra o feiticeiro”. Não esperava que Arcay tivesse a mesma avaliação que nós, acerca dos riscos da candidatura Marina. Mas fico surpreso com este nível de subestimação dos riscos envolvidos nesta candidatura.

Arcary percebe que responsabilizar Marina pela baixa votação da “esquerda da esquerda” conduz a um círculo vicioso. Aceita esta explicação e outras do mesmo estilo, nunca a “esquerda da esquerda” sairá da condição de força minoritária. Por isto, ele aponta que “este fator é muito parcial. Embora, relativamente, verdadeira, esta abordagem não esgota o problema. Permanece insuficiente”.

Arcary apresenta, então, quatro argumentos “para explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira”. Os dois primeiros argumentos são universalmente válidos para qualquer democracia burguesa: as eleições são diretas, mas não são livres; as eleições são diretas, mas não são democráticas. O problema destes argumentos é que eles ajudam a entender por qual motivo nem mesmo o PT tem 51% do universo total de eleitores; mas não são suficientes para explicar porque os trabalhadores e trabalhadoras conscientes não votam principalmente na “esquerda da esquerda”.

Arcary introduz, então, o terceiro argumento, que vale a pena transcrever na íntegra: “a percepção de que a sociedade está dividida em interesses irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou de ser uma referência importante, decisiva, incontornável, para a nova geração proletária. A consciência de classe forjada ao longo das lutas ao final dos anos setenta e durante os anos oitenta regrediu. A direção do PT, que tinha sido a maior beneficiária desse avanço, merece ser responsabilizada por essa deseducação. A transformação do petismo em lulismo, a “fulanização” da luta política, o culto à personalidade do grande líder teve consequências, com a desvalorização das organizações coletivas e independentes, como os sindicatos e movimentos. Os trabalhadores despolitizaram-se depois de doze anos de governos do PT. A defesa do socialismo não é mais, tampouco, uma referência para a maioria dos trabalhadores. Em outras palavras, os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não estão organizados de forma independente para defender seus interesses. Por isso, na hora da crise eleitoral do governo PT, quem cresce é uma candidatura gerada no núcleo duro do aparelho do PT, mas que abre o espaço para que a oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da Fazenda através de Marina. A ideologia, ou seja, uma visão de mundo, um conjunto de critérios e valores que expressam as nossas preferências, parece ter menos peso na definição de voto no Brasil, quando comparado com outros países, a começar pelos vizinhos Argentina ou Uruguai. Essa facilidade de atrair o eleitorado quer ele seja de esquerda ou de direita foi confirmada por pesquisa de opinião, e não se restringe a Marina Silva”.

Arcary poderia ter resumido estes argumentos assim: “traição petista”. E continuaria sem resposta o “que fazer?” frente a isto. Pois quem considera que a traição petista é capaz de gerar tamanho dano, precisa responder como sair desta enrascada. Como veremos mais adiante, a saída que Arcary aponta é derrotar o PT.

Arcary, como é evidente, só vê o copo meio vazio. Temo, aliás, que ele esteja começando a ceder ao “pessimismo” que invariavelmente ataca quase todos os quadros de esquerda, depois de certo tempo de caminhada.

Por exemplo: depois de tudo que o próprio Arcary disse acerca das jornadas de junho de 2013, será 100% correto dizer que para a “nova geração proletária” a “percepção de que a sociedade está dividida em interesses irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou de ser uma referência importante”?

Outro exemplo: como explicar o crescimento no número de greves, nos últimos anos, se adotarmos o critério de que “os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não estão organizados de forma independente para defender seus interesses”.

Um terceiro exemplo: é indiferente, para a classe trabalhadora, o que ocorreu em termos de emprego e de salário desde 2003?

Arcary, entretanto, deixa escapar uma frase que alimenta minhas esperanças. Refiro-me a dizer que Marina “abre o espaço para que a oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da Fazenda”. Ou seja, admite que pode piorar (e que, portanto, pode ser melhor). Falo isto sem ironia: acredito que todos os fenômenos apontados por Arcary existem, mas para cada tendência há uma contra-tendência que devemos alimentar, fortalecer, organizar.

Por exemplo: a crise de 2005, as jornadas de junho de 2013 e a candidatura Marina tem relação, direta ou indireta, com o que fez ou com o que deixou de fazer o PT e os governos Lula e Dilma. O que fazer diante disto? “Denunciar e destruir” o PT, como dizem setores da “esquerda da esquerda”? Ou buscar maneiras de seguir em frente e avançar?

A reação à crise de 2005 nos permitiu um segundo mandato Lula mais avançado. Apesar disto, grande parte da esquerda da esquerda não votou em Lula, no segundo turno de 2006. A reação às jornadas de junho de 2013 desembocou na luta pela Constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Apesar disto, parte da esquerda da esquerda não apoia a campanha pelo Plebiscito Popular. A reação à candidatura Marina está levando a campanha Dilma à sintonizar com demandas mais avançadas. Apesar disso... bom, neste caso, aguardemos, quem sabe, não é mesmo?

Arcary ainda dispõe de um quarto argumento, “para explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira”, a saber: “os partidos que defendem os interesses dos trabalhadores enfrentam uma enorme resistência pela defesa que fazem da legitimidade da luta de classes”.

Arcary, antevendo certamente as perigosas conclusões que podem ser extraídas desta frase, explica: “a situação econômica e social, embora deteriorada pela quase estagnação do crescimento, pelo aumento das pressões inflacionárias até dois meses atrás, ainda não é grave o bastante para que o mal-estar que se manifestou em Junho de 2013 tenha se deslocado à esquerda. A parcela jovem da classe trabalhadora que foi às ruas ainda não se vê representada pelas propostas da oposição de esquerda, que parece muito radical. Radical porque conflituosa, defendendo a necessidade de enfrentamento com o capital. Portanto, aos olhos desta corrente de opinião que Marina canaliza, pelo menos por enquanto, também, perigosa”.

Arcary, em junho de 2013, tinha uma visão mais otimista da situação. Estive com ele num debate na PUC São Paulo, no dia em que Haddad e Alckmin anunciaram conjuntamente a revogação do aumento das tarifas. E ouvi, com estes ouvidos que a terra ainda há de comer, Arcary especulando sobre a possibilidade de um desenlace insurrecional para aquela situação política em que o país estava.

Arcary, agora, tem uma visão mais realista da situação. Mas sua análise padece de um problema que vou tentar resumir, de maneira esquemática, assim: a esquerda da esquerda fica parada, com suas posições corretas, esperando que a massa aprenda a apreciar seu fino biscoito, quero dizer, seu justo radicalismo. Penso eu que esta postura –na qual certamente Arcary não vai se reconhecer, mas que do meu ponto de vista é a postura de amplos setores da esquerda da esquerda— ajuda a entender por quais motivos a "esquerda da esquerda" não conseguiu capitalizar 2013. Traduzindo noutros termos: a "esquerda da esquerda" gostaria de ter transformado 2013 em alavanca contra Dilma e contra o PT, e agora descobriu que a direita teve mais êxito nisto.

Arcary e boa parte da "esquerda da esquerda", é bom dizer, não poderiam ter agido de outra forma, porque seu pensamento estratégico parece organizado em torno da ideia de derrotar o PT. Quem poderia ter agido de outra forma? O próprio PT e o governo Dilma, que fizeram gestos neste sentido (com destaque para o tema da Constituinte), mas tampouco foram consequentes, tampouco fizeram tudo o que devia ter sido feito.

Arcary, além dos cinco argumentos listados (Marina, falta de liberdade, falta de democracia, baixos teores de classismo e de radicalidade), acrescenta como “questão central” a alienação, pois “sem a alienação, a dominação do capital não seria possível. A forma política da alienação é a desconfiança dos trabalhadores em relação à sua capacidade de se unir e defenderem-se coletivamente. É o pé atrás, a suspeita, o receio, o preconceito dos seus iguais. O sentimento manipulador mais poderoso do pensamento mágico é o medo: a capitulação ao impulso do desejo que se confunde em realidade”.

Arcary é, do ponto de vista pessoal, do ponto de vista do que ele pretende ser, do ponto de vista de sua “razão de viver”, um revolucionário sincero. Por isto, fico preocupadíssimo com esta sua linha de argumentação. Explico: a alienação é um fenômeno tão genérico, que utilizá-lo como explicação para uma situação histórico-concreta é sinal de desespero.

Arcary poderia evitar isto se fizesse a velha e boa “análise concreta da situação concreta” Ou seja: admitisse que o voto no PT é, para parte importante da classe trabalhadora brasileira, um voto nos seus reais interesses de classe. E buscasse, a partir da situação política concreta, descobrir por onde avançar. Mas como o seu método (e o método de boa parte da "esquerda da esquerda") é olhar “de fora” o processo, é inevitável que a conclusão seja “culpar os outros” (a teoria da traição) ou “culpar a classe” (caso em que o esquerdismo desemboca no niilismo e, “já que Deus não existe”, do niilismo muitos vão para a direita).  

Arcary, é bom dizer, aferra-se a primeira conclusão: a “crise de direção do proletariado”, que ele vincula a “imaturidade objetiva e a fragilidade subjetiva do proletariado como sujeito social independente na luta anticapitalista”. Vincula, mas não tira as conclusões adequadas destas duas frases. Pois se existe uma situação histórica em que o proletariado manifesta “imaturidade objetiva” e “fragilidade subjetiva”, não seria o caso dos revolucionários adequarem cuidadosamente sua tática e suas formas de organização?

Arcary, ao contrário disto, reafirma que “os trotskistas consideram central a luta implacável contra o PT”. Segundo ele, por uma “razão simples. Esta insegurança do proletariado só se mantém, se reproduz, se perpetua porque há chefes burocráticos que dependem dela para se manter no controle da representação dos trabalhadores”.

Arcary intui que esta simplificação joga fora a “imaturidade objetiva” e converte a “fragilidade subjetiva” em assunto de romance policial. Motivo pelo qual ele é obrigado a se defender da acusação segundo a qual “os trotskistas são criticados porque supervalorizam o lugar da traição política na história”.

Arcary não pode, entretanto, num texto dedicado a situação eleitoral de 2014, fugir do seguinte dilema: no segundo turno das eleições de 2014, o que interessa à classe trabalhadora brasileira?

Arcary dedica a este “detalhe” uma nota de rodapé. Nela é dito que “sob a pressão de uma eleição a cada dia mais apertada, a direção do PT começou a abraçar, por desespero, um discurso catastrofista que quer apresentar a disputa entre Marina e Dilma como um armagedon político. Marina seria do mal, Dilma seria do bem. Uma análise marxista abraça um método menos emocional: é uma interpretação das candidaturas orientada por um critério de classe. Muitas vezes na história os governos dos partidos operários reformistas foram mais úteis para a defesa da ordem que os partidos da própria burguesia: protegiam o capitalismo dos capitalistas. Os socialistas, por princípio, não diferenciam diante dos trabalhadores os carrascos mais cruéis dos menos cruéis”.

Arcary, como se vê, anuncia um método, mas fica nos devendo uma “interpretação das candidaturas orientadas por um critério de classe”. Mas, com ou sem análise, a preços de hoje, a questão tende ao seguinte: teremos um segundo turno entre Dilma e Marina. A favor de Marina estará o grande capital, o oligopólio da mídia e a direita mais conservadora deste país. Provavelmente a soma de votos entre Marina e Aécio superará a votação de Dilma no primeiro turno. Logo, lavar as mãos e dizer que não há diferença ajudará objetivamente Marina.

Arcary nos deve esta resposta: ele considera central a luta implacável contra o PT, a ponto de não votar em Dilma no segundo turno?  

Concluo meus comentários ao texto de Arcary, com a frase final do seu próprio texto: Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

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Por que a esquerda socialista terá poucos votos nas eleições de 2014? por Valério Arcary

                                                                                   
Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota.
Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas.
Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.
Sabedoria popular japonesa

          Muitos militantes estão se interrogando por que os candidatos da esquerda socialista, Zé Maria do PSTU, Luciana Genro do PSOL e Mauro Iasi do PCB, irão, muito provavelmente, ter poucos votos nas eleições de outubro de 2014. Afinal, já são doze anos desde a eleição de Lula, um tempo grande o bastante, aparentemente, para que uma experiência e balanço político possam ser feitos. Afinal, o ano passado, tivemos as mobilizações de Junho, as maiores no país desde o Fora Collor em 1992.
          Admitamos que o tema é complexo. Ele se relaciona, por um lado, com o crescimento vertiginoso da candidatura de Marina Silva. Ela vem conseguindo ocupar, simultaneamente, o espaço da oposição de direita e de esquerda ao governo de coalizão liderado pelo PT, e representado por Dilma Roussef, deslocando Aécio Neves, e bloqueando uma alternativa à esquerda. O discurso da terceira via, que já tinha sido ensaiado em 2002 por Ciro Gomes e Garotinho, e em 2010 pela própria Marina Silva, encontra respaldo entre aqueles que esgotaram suas expectativas em relação ao PT, mas não querem o retorno aos anos noventa com os governos do PSDB.
          Marina em 2014, nesse sentido, é mais uma mediação. Mais uma posição intermediária. Mais uma armadilha. A terrível pressão das ilusões na possibilidade de regulação de um capitalismo sem corrupção, de um capitalismo sem exploração selvagem. Uma candidatura que captura para uma saída moderada, amigável para a Avenida Paulista, o impulso de Junho. Uma nova versão do papel representado, tragicamente, pelo “Lulinha paz e amor” , só que agora, talvez, em forma de farsa. O feitiço se voltou contra o feiticeiro.[1]
         Mas este fator é muito parcial. Embora, relativamente, verdadeira, esta abordagem não esgota o problema. Permanece insuficiente. Quatro argumentos principais foram acumulados para explicar a dificuldade eleitoral da esquerda socialista brasileira, e merecem não ser esquecidos. Primeiro, as eleições são diretas, mas não são livres. Em inúmeras regiões do país, ainda predomina um clima de medo, intimidação, ameaça, perseguição e represália que impede que a escolha política-eleitoral se realize com liberdade. A atuação de milícias, do crime organizado, de prefeitos que dominam como coronéis, mantém currais eleitorais intactos. Invioláveis.
         Segundo, as eleições são diretas, mas não são democráticas. A diferença de orçamentos de campanha é abismal. E o dinheiro em campanha eleitoral conta. É porque as somas excedem centenas de milhões que a eleição de um deputado para o Congresso Nacional é quase impossível para os partidos que não aceitam financiamento empresarial. Como a distribuição do tempo de TV e rádio é proporcional às bancadas de deputados, estabelece-se uma partidocracia, uma tirania dos partidos de confiança dos monopólios. Não fosse isso o bastante, o acesso aos debates é restrito.
        Terceiro, a percepção de que a sociedade está dividida em interesses irreconciliáveis de classe, opondo o capital ao trabalho, o classismo, deixou de ser uma referência importante, decisiva, incontornável, para a nova geração proletária. A consciência de classe forjada ao longo das lutas ao final dos anos setenta e durante os anos oitenta regrediu. A direção do PT, que tinha sido a maior beneficiária desse avanço, merece ser responsabilizada por essa deseducação. A transformação do petismo em lulismo, a “fulanização” da luta política, o culto à personalidade do grande líder teve consequências, com a desvalorização das organizações coletivas e independentes, como os sindicatos e movimentos. Os trabalhadores despolitizaram-se depois de doze anos de governos do PT. A defesa do socialismo não é mais, tampouco, uma referência para a maioria dos trabalhadores.
         Em outras palavras, os trabalhadores não confiam nas suas próprias forças, e não estão organizados de forma independente para defender seus interesses. Por isso, na hora da crise eleitoral do governo PT, quem cresce é uma candidatura gerada no núcleo duro do aparelho do PT, mas que abre o espaço para que a oposição de direita possa voltar para o Banco Central e para o Ministério da Fazenda através de Marina.
       A ideologia, ou seja, uma visão de mundo, um conjunto de critérios e valores que expressam as nossas preferências, parece ter menos peso na definição de voto no Brasil, quando comparado com outros países, a começar pelos vizinhos Argentina ou Uruguai. Essa facilidade de atrair o eleitorado quer ele seja de esquerda ou de direita foi confirmada por pesquisa de opinião, e não se restringe a Marina Silva. [2]
         Quarto, os partidos que defendem os interesses dos trabalhadores enfrentam uma enorme resistência pela defesa que fazem da legitimidade da luta de classes. A situação econômica e social, embora deteriorada pela quase estagnação do crescimento, pelo aumento das pressões inflacionárias até dois meses atrás, ainda não é grave o bastante para que o mal-estar que se manifestou em Junho de 2013 tenha se deslocado à esquerda. A parcela jovem da classe trabalhadora que foi às ruas ainda não se vê representada pelas propostas da oposição de esquerda, que parece muito radical. Radical porque conflituosa, defendendo a necessidade de enfrentamento com o capital. Portanto, aos olhos desta corrente de opinião que Marina canaliza, pelo menos por enquanto, também, perigosa.
          Estes cinco argumentos são úteis para compreender porque a esquerda socialista terá poucos votos. Mas ainda tangenciam a questão central. A questão central permanece sendo a desumanização dos trabalhadores, a alienação.[3] Sem a alienação, a dominação do capital não seria possível. A forma política da alienação é a desconfiança dos trabalhadores em relação à sua capacidade de se unir e defenderem-se coletivamente. É o pé atrás, a suspeita, o receio, o preconceito dos seus iguais. O sentimento manipulador mais poderoso do pensamento mágico é o medo: a capitulação ao impulso do desejo que se confunde em realidade.
         A alienação política é um processo complexo em que o trabalhador não se reconhece a si mesmo. Assimila ideias, projetos, valores e ideologias que não correspondem aos seus interesses. Isolado, individualizado, separado de si próprio e dos seus iguais, o trabalhador é vítima de uma brutalização tão impiedosa que o leva a procurar identificação com os interesses de outras classes.
        Esta dimensão da luta política tem as suas formas. Duas são as mais comuns: (a) milhões de proletários não votam na esquerda porque não querem “perder” o seu voto. Como a esquerda tem menos visibilidade, portanto, parece ter menos chances eleitorais. É o seguidismo da maioria. Seguir o impulso das ondas majoritárias de preferência de outras classes, para acompanhar o voto vencedor, identificado como voto útil; (b) é muito comum que o voto não seja uma escolha positiva, mas negativa, pelo critério do “menos pior”, ou seja, orientado pela campanha que consegue insuflar o maior medo, o pavor de que tudo poderá ficar ainda pior do que antes.
        Na tradição inspirada pela elaboração de Leon Trotsky, esse fenômeno deve ser definido de forma mais rigorosa como a crise de direção do proletariado. A crise de direção tem duas dimensões que podem estar desenvolvidas em proporções distintas em cada processo histórico-concreto: a imaturidade objetiva e a fragilidade subjetiva do proletariado como sujeito social independente na luta anticapitalista.
        O que é menos compreendido é porque os trotskistas consideram central a luta implacável contra o PT. A razão é simples. Esta insegurança do proletariado só se mantém, se reproduz, se perpetua porque há chefes burocráticos que dependem dela para se manter no controle da representação dos trabalhadores.
        A crítica mais comum do que se considera como exagerado nesta avaliação é aquela que defende que as lideranças mantiveram influência majoritária porque suas posições – e até ações – correspondiam, grosso modo, à vontade dos representados. O argumento pode impressionar, mas é falso. O beabá da luta política burguesa é a dissimulação, a máscara, a camuflagem, a vigarice.
       As massas populares podem agir contra os seus interesses, mas não indefinidamente. As direções burocráticas podem agir contra os interesses de suas bases sociais proletárias e, ainda assim, manter por algum tempo sua influência, porque as ilusões nos dirigentes são grandes, e é necessária toda uma experiência, muitas vezes até décadas, para que a massa dos trabalhadores perceba que foram traídos.
        Os trotskistas são criticados porque supervalorizam o lugar da traição política na história. Admitamos que o tema pode ser simplificado e, portanto, muito mal compreendido. Não é inusitado que seja interpretado como uma versão conspirativa da história, em que o lugar da traição política desvaloriza todos os outros fatores. Alguns desprezam esta diferenciação entre classe social e sujeitos políticos. Rejeitam a ideia da traição. Consideram-na imprópria, argumentando que as intenções humanas seriam inescrutáveis. Mas essa crítica não é nem verdadeira, nem justa. As intenções dos líderes podem ser impossíveis de esclarecer, mas os atos, não.
          Apresentemos o problema: o fenômeno se manifesta quando a representação do proletariado é feita por partidos e líderes que defendem os interesses de outras classes – como foi o papel da socialdemocracia e do estalinismo nos países centrais, e os nacionalismos pequeno-burgueses ou burgueses nos países periféricos. Influir na representação das classes exploradas foi sempre decisivo para a preservação dos interesses da ordem em todos os tempos. Alimentar a desconfiança, dividir a direção da classe inimiga, atrair os líderes moderados, isolar os radicais, promover a intriga, são o abecedário da luta política. Eliminar da história o lugar da traição é um procedimento, politicamente, ingênuo e teoricamente superficial. A luta de classes é um combate tão sério que não se pode ignorar que todas as armas foram e continuarão sendo usadas para colocar o inimigo em posição de inferioridade.
          Diferentes tendências historiográficas já exaltaram o papel dos grandes chefes políticos, cultuados até como heróis e, simetricamente, já argumentaram que a qualidade maior ou menor das lideranças seria irrelevante nos curso dos acontecimentos, anulada por outros fatores mais significativos. O lugar da direção variou muito, é verdade, segundo as circunstâncias, da relativa obscuridade à máxima exposição. Isto posto, anulados todos os outros elementos, a superioridade dos líderes faz a diferença. São os soldados que lutam as batalhas. Mas, quando em condições de relativa igualdade de forças, são as decisões dos generais que decidem a possibilidade de vitória.
         Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

[1] Sob a pressão de uma eleição a cada dia mais apertada, a direção do PT começou a abraçar, por desespero, um discurso catastrofista que quer apresentar a disputa entre Marina e Dilma como um armagedon político. Marina seria do mal, Dilma seria do bem. Uma análise marxista abraça um método menos emocional: é uma interpretação das candidaturas orientada por um critério de classe. Muitas vezes na história os governos dos partidos operários reformistas foram mais úteis para a defesa da ordem que os partidos da própria burguesia: protegiam o capitalismo dos capitalistas. Os socialistas, por princípio, não diferenciam diante dos trabalhadores os carrascos mais cruéis dos menos cruéis.        

[2] Segundo a primeira pesquisa de âmbito nacional realizada pelo DataFolha: “No Brasil, há uma quantidade bem maior de eleitores identificados com valores de direita do que de esquerda. O primeiro grupo reúne 49% da população, enquanto os esquerdistas são 30%. Isso, porém, produz pouco impacto nos índices de intenção de voto para presidente em 2014. Os dados são do Datafolha, que na pesquisa eleitoral(…)também investigou a inclinação ideológica do eleitorado. Conforme os dados do instituto, a presidente Dilma Rousseff(…) tem praticamente o mesmo padrão de votação entre eleitores identificados com valores de direita,centro-direita,centro e centro-esquerda.(…)É a primeira vez também que os pesquisadores classificaram os entrevistados numa escala da esquerda à direita. Antes, as denominações eram diferentes. A escala ia de extremo liberal (o equivalente a esquerda agora) a extremo conservador (direita)(…) Para identificar e fazer os agrupamentos ideológicos dos eleitores, o Datafolha faz um conjunto de perguntas envolvendo valores sociais, políticos e culturais.” http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/10/1356184-ideologia-interfere-pouco-na-decisao-de-voto-diz-datafolha.shtml Consulta em 02/09/2014.

[3] Sobre o tema da consciência de classe, uma das obras de referência no marxismo foi História e consciência de classe, hoje muito desvalorizada pelo entusiasmo com que defende o protagonismo do proletariado. Nesse texto, Lukács sistematiza de forma irretocável, algumas conclusões teóricas sobre as contradições entre a existência enquanto classe, e a formação da consciência de classe que permanecem até hoje, para o fundamental, insuperáveis. Lukács insiste que nas condições de miséria material e cultural em que está mergulhado, o proletariado sofre a mais abjeta brutalização e desumanização, e que só pela ação coletiva e solidária pode apreender a sua força social e forjar as armas de sua organização independente que lhe poderá permitir uma negação da ordem e sua afirmação como classe para si. A seguir um pequeno trecho de História e consciência de Classe, onde podemos encontrar, em repetidas passagens, conclusões como a que transcrevemos: “o proletariado surge como produto da ordem social capitalista (…) as suas formas de existência estão constituídas de tal forma que a reificação tem, necessariamente, de se exprimir nelas de forma mais flagrante e mais aguda, produzindo a mais profunda desumanização. O proletariado compartilha, pois, a reificação de todas as manifestações de vida com a burguesia.” (grifo nosso) (LUKÁCS, Georgy. História e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974. p. 35)

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