domingo, 14 de setembro de 2014

Quem é a esquerda que a direita usa?

Ao que me parece provocado principalmente por um artigo de Breno Altman, Valério Arcary escreveu novo texto com críticas a Dilma, ao PT e a esquerda petista.

O artigo de Breno Altman foi publicado em http://www.brasil247.com/pt/247/artigos/153194/Por-que-a-ultra-esquerda-brasileira-%C3%A9-residual.htm

O texto de Arcary é reproduzido ao final.

Arcary inicia perguntando: "quem é a esquerda que a direita gosta?"

A resposta mais adequada para esta pergunta é: a direita não "gosta" da esquerda, nunca.

Mas devemos perguntar: quem é a esquerda que a direita usa?

Para esta pergunta, minha sugestão de resposta é: no atual momento, a direita brasileira usa aquela esquerda que ajuda a debilitar Dilma e o PT.

A maior parte do que eu teria a dizer acerca deste tema, já foi dito em textos anteriores, entre os quais Ser de esquerda não é profissão de fé, nem serviços prestados: http://valterpomar.blogspot.com.br/2014/09/ser-de-esquerda-nao-e-profissao-de-fe.html

Tendo em vista o que diz Arcary em seu novo texto, quero acrescentar apenas o seguinte:

1) não concordo que a campanha eleitoral de 2014 seja a "mais imprevisível desde 1989". Desde o final de 2012 já havíamos apontado quais seriam as características fundamentais da eleição presidencial deste ano. Por isto, ao menos no que nos diz respeito, não há "insegurança" nem "falta de serenidade";

2) a violência (e não apenas a "rispidez") desta eleição está vinculada a mudanças no comportamento das classes fundamentais da sociedade brasileira. Na classe trabalhadora, aumentou o contingente dos que encaram com crítica, desconfiança ou indiferença o PT e os governos que o PT encabeça. Na pequena burguesia, aumentou a influência daqueles que consideram o PT e seus governos como "a fonte de todos os males". No grande empresariado capitalista, tornou-se hegemônica a decisão de derrotar o PT e eleger outro governo para o país;

3) as condições em que transcorre a eleição presidencial de 2014 tornam ainda mais necessário "demarcar o campo de classe", seja com setores da esquerda moderada (que conciliam com a direita, com o oligopólio da mídia e com o grande capital, dificultando assim nossa vitória e um segundo mandato superior), seja com setores da "esquerda da esquerda" (que tratam o PT e Dilma como inimigos principais e, agindo assim, convertem-se em linha auxiliar da oposição de direita);

4) Arcary reclama que "não foram poucos os artigos dedicados a diminuir e desqualificar a oposição de esquerda e, em especial, o PSTU, durante o último mês". Bom, ao menos no que me diz respeito, o primeiro texto que li nesta linha foi escrito pelo próprio Arcary, prevendo um baixo resultado eleitoral para o PSTU, para o PSOL e para o PCB. Maiores detalhes estão em http://valterpomar.blogspot.com.br/2014/09/sobre-resposta-de-valerio-arcary.html

5) ao menos em princípio, não considero "indigno" dizer que a "oposição de esquerda cumpre o papel de uma linha auxiliar da oposição de direita". Indigno é ser linha auxiliar da direita. Indigno é acusar alguém de um crime que não cometeu. Assim, se deseja provar que se trata de algo indigno, Arcary precisaria demonstrar que a frase a seguir não é verdadeira: "no atual período histórico, quem acha possível derrotar ao mesmo tempo a direita e o PT, acaba geralmente virando linha auxiliar da direita”. Arcary não consegue provar isto. Com isto, sua reclamação se torna um muxoxo, que considero estranho vindo de alguém que não é propriamente tímido quando se trata de criticar Dilma, o PT e a esquerda do PT;

6) Arcary diz que "na luta política existem mais do que dois campos, situação e oposição. Existem as classes sociais, e elas se expressam através de vários partidos". Isto é verdade. Mas também é verdade que existem alguns momentos em que a luta política se torna polarizada e a disputa envolve apenas dois campos. Um segundo turno presidencial em 2014, por exemplo;

7) Arcary tenta justificar as ações da esquerda da esquerda, hoje, apoiando-se nas ações do PT nos anos 1980. A comparação omite um detalhe fundamental: as circunstâncias históricas. O PT era minoritário em 1980, frente a quem e contra quem? O PT era mais forte (na classe trabalhadora) que os seus concorrentes à esquerda (PCB, PCdoB, MR8). E era minoritário (inclusive na classe trabalhadora) frente aos partidos da burguesia. Arcary sabe disso e lembra que o PT "surgiu desafiando a liderança do MDB e, portanto, dividindo a unidade das oposições à ditadura". Mas Arcary não percebe que é nisto que reside uma diferença fundamental entre o PT dos anos 1980 e a "esquerda da esquerda" nos dias atuais: o PT dos anos 80 representava a maior parte da vanguarda da classe trabalhadora brasileira, contra a hegemonia da oposição burguesa na luta contra a ditadura. Já a "esquerda da esquerda" busca representar uma minoria da classe trabalhadora, contra um partido que reúne a maior parte da vanguarda da classe trabalhadora. Não é possível esquecer este "detalhe" --que classe e fração de classe cada partido representa e contra quem luta--  quando comparamos a esquerda dos anos 1980 com a esquerda em 2014;

8) o PCdoB, o MR8 (e também o PCB) acusavam o PT de "dividir as oposições". Mas estes partidos diziam isto porque aceitavam que a liderança da oposição coubesse a burguesia. O PT não aceitava ficar, nem deixar a classe trabalhadora estar sob hegemonia da oposição burguesa. A postura do PT nos anos 1980 era baseada e também favorecida por um forte movimento ascensional de luta e organização da classe trabalhadora. É por isto que o segundo turno da eleição presidencial de 1989 foi Lula contra Collor, não Leonel Brizola, ou Roberto Freire, ou Ulysses Guimarães contra Collor. Já em 2014, a "esquerda da esquerda" não aceita a liderança do PT e tenta mimetizar, contra o Partido dos Trabalhadores, o combate que travamos contra a oposição liberal nos anos 1980. Como os alvos são distintos, mesmo quando ocorre um movimento ascensional de lutas, não é a "esquerda da esquerda" que capitaliza, como vimos nas jornadas de 2013;

9) eu não discuto a "legitimidade" das candidaturas de Mauro Iasi, Zé Maria, Luciana Genro e Rui Pimenta (do PCO, partido que Arcary sei lá por qual motivo exclui de seus comentários). No que me diz respeito, acho que a "esquerda da esquerda" tem o direito e o dever de ter candidatura própria no primeiro turno. O que eu pergunto é o que farão no segundo turno;

10) Arcary diz ser falsa a "premissa de que, quem não está conosco, objetivamente, é aliado dos nossos inimigos". Mas Arcary não prova que esta premissa seja falsa. No que me diz respeito, não discuto a "honestidade subjetiva" da "esquerda da esquerda". Nem afirmo que aquela premissa seja uma tese válida para todo e qualquer momento. Nem digo que valha para todos. O que eu disse e repito é que "no atual período histórico, quem acha possível derrotar ao mesmo tempo a direita e o PT, acaba geralmente virando linha auxiliar da direita”;

11) a classe trabalhadora possui várias frações. Achar que o PT representa a todas seria, de fato, uma tolice. Até porque uma parte da classe trabalhadora vota nas candidaturas da direita, da burguesia. A questão é outra: em que circunstâncias pode ser justo que um partido de esquerda, que representa um setor da classe trabalhadora, transforme outro partido, que também representa um setor da classe trabalhadora, em inimigo principal? Mais exatamente: nas circunstâncias de um segundo turno da eleição presidencial de 2014, é justo que a "esquerda da esquerda" transforme o PT em inimigo principal? Se a "esquerda da esquerda" fizer isto, ela não chamará o voto em Dilma num segundo turno de 2014. E isto ajudará, objetivamente, a candidatura da burguesia e prejudicará objetivamente a candidatura do Partido que, no atual momento histórico, expressa a posição majoritária na vanguarda da classe trabalhadora. O que, entre outras coisas, não é um caminho inteligente para quem deseja ganhar maioria na classe trabalhadora, o que suponho seja o desejo de qualquer pessoa de esquerda;

12) obviamente não sou contra determinada minoria, por ser minoria. A questão que discuto é: qual a política desta minoria? É uma política que ajuda a classe trabalhadora a derrotar a burguesia? No caso concreto da eleição de 2014, há setores da "esquerda da esquerda" que adotam uma política na minha opinião prejudicial aos interesses da classe trabalhadora. Traduzindo: é melhor, é mais fácil, defender os interesses da classe trabalhadora no contexto de um governo encabeçado pelo PT do que no contexto de um governo encabeçado pela direita, pela burguesia. A política de setores da "esquerda da esquerda" parte, geralmente, de outra premissa: a de que derrotar o PT é condição essencial para o avanço da classe trabalhadora. Quando age assim, a política desta minoria (presente nos partidos da "esquerda da esquerda") é prejudicial para a classe trabalhadora e, aliás, é prejudicial para a própria minoria, que também por este motivo não consegue avançar além de certos limites;

13) ser maioria não dá razão para ninguém. Nem ser minoria tira a razão de ninguém. Mas a luta política não é uma disputa para saber quem tem razão. A luta política é uma disputa pelo poder. E para um partido de esquerda, uma premissa para conquistar o poder é conquistar a maioria na classe trabalhadora. Arcary fala dos bolcheviques, diz que "foram ínfima minoria na Segunda Internacional em 1914" e "minoria na Rússia até Agosto de 1917, portanto, durante mais de vinte anos". Mas deixa de citar o fundamental, do meu ponto de vista: qual foi a política desenvolvida pelos bolcheviques para ganhar maioria junto a classe operária russa e qual a política que eles adotaram para manter e ampliar esta influência, especialmente nos períodos não revolucionários. Quem conhece a história destes períodos sabe que os bolcheviques tinham uma admirável flexibilidade, que a "esquerda da esquerda" faria muito bem em estudar;

14) eu não acho relevante, neste debate, discutir se a "audiência" da "esquerda da esquerda" é ou não "residual". Meu problema, volto mais uma vez ao ponto, não é discutir o tamanho de ninguém. Quero discutir a política. Pois quem tem a política certa, pode influenciar, pode crescer, pode até deixar de ser minoria. Mas quem tem a política errada, não importa se é maioria ou minoria, prejudica os interesses da classe trabalhadora. E, voltando ao meu tema preferido, a atitude frente a eleição presidencial de 2014 é muito importante;

15) Arcary diz que "a possível vitória de Dilma, que permanece incerta, se acontecer, significará uma derrota, não uma vitória da esquerda petista. Porque será para a esquerda petista uma vitória de Pirro". Arcary erra. Se Dilma perdesse, seria uma derrota para toda a classe trabalhadora e para toda a esquerda, inclusive para a esquerda petista e, pasmem, até mesmo para os setores honestos da "esquerda da esquerda". Já a vitória de Dilma será uma vitória para toda a classe trabalhadora, inclusive para a esquerda petista e, num certo sentido, até mesmo para os setores honestos da "esquerda da esquerda". Entendo por honestos aqueles que tem efetivo compromisso com melhorar a vida e a influência política da classe trabalhadora. Agora, evidente que a história não termina no segundo turno de 2014. Por isto, não está em disputa apenas a vitória de Dilma, mas a natureza do segundo mandato Dilma. Quanto mais à esquerda formos na disputa eleitoral, melhores as chances de termos um segundo mandato superior do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora. Mas isto não está dado, como nunca nada está dado;

16) Arcary afirma que "o argumento de que os governos do PT foram um período de resistência ao neoliberalismo é uma fantasia exagerada, portanto, insustentável, em um debate sério. Em outras palavras, pensamento mágico. Expressão pura da força do desejo". É claro que houve resistência ao neoliberalismo durante o período 2003-2014. A questão, portanto, é outra: em que medida a ação dos governos encabeçados pelo PT contribuiu para esta resistência. Para responder esta questão, é preciso discutir qual a responsabilidade dos governos Lula e Dilma no fato de que a classe trabalhadora vive melhor hoje do que no período de governos tucanos. Ou debater, hipoteticamente, se a classe trabalhadora viveria igual ou pior, caso o PSDB tivesse vencido as eleições de 2002, 2006 e 2010. Ou, ainda, responder se os governos Lula e Dilma não contribuíram para que o Brasil tivesse, hoje, um desemprego inferior ao que existe em várias metrópoles do capitalismo. Qualquer "debate sério" sobre isto concluirá que, apesar de todas as concessões e contradições, os governos Lula e Dilma contribuíram para a resistência ao neoliberalismo;

17) Arcary reconhece que houve uma "tentativa de redução da taxa de juros", que houve "crescimento entre 2004 e 2008, com uma retomada em 2010", que houve "uma redução do desemprego", que houve uma "recuperação do salário médio para os níveis de 1990", que houve "reformas progressivas durante os últimos doze anos", que "houve aumento do salário mínimo acima da inflação", que houve "elevação do crédito popular com os empréstimos consignados", que houve "expansão do Bolsa Família como política de emergência assistencial", que houve "sensação de alívio depois da degradação das condições de vida pela superinflação dos anos oitenta, e estagnação dos anos noventa". Mas, segundo ele, "nada disso" é o bastante para definir os governos do PT como "reformistas. Porque foram muito mais numerosas as contra-reformas". Infelizmente Arcary não cita a lista de contra-reformas. Mas convenhamos: qualquer que seja a lista, isto não vai alterar alguns dados básicos, citados por ele mesmo, a saber: o emprego, o salário e a sensação de alívio. Como Arcary mesmo diz, não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol.

Finalmente: num segundo turno das eleições presidenciais, haverá duas alternativas. Então, quem não votar em Dilma, vai agir objetivamente como linha auxiliar da oposição de direita. Ou seja, uma "esquerda" que a direita usa.


Segue abaixo o texto de Valério Arcary, tal qual o autor me enviou.


Quem é a esquerda que a direita gosta?
                                              Valerio Arcary
Não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol.
Sabedoria popular portuguesa

      A campanha eleitoral de 2014 é a mais imprevisível desde 1989. É natural, por isso, que seja a mais ríspida. A aspereza das reações polêmicas é proporcional à incerteza de quem vencerá as eleições presidenciais. A insegurança é inimiga da serenidade. Não foram poucos os artigos dedicados a diminuir e desqualificar a oposição de esquerda e, em especial, o PSTU, durante o último mês.
      Valter Pomar afirmou, por exemplo, concluindo um texto recente: "no atual período histórico, quem acha possível derrotar ao mesmo tempo a direita e o PT, acaba geralmente virando linha auxiliar da direita”. [1] Outros militantes da esquerda petista têm asseverado que o PSTU seria um partido irrelevante porque Zé Maria não superou 1% das preferências de voto nas pesquisas de opinião. Breno Altman, por exemplo: “Mas não é apenas a influência eleitoral desses partidos que é pífia. Também são forças de pouca envergadura no movimento sindical, estudantil e camponês. Não passam de franjas isoladas na intelectualidade (...) Ainda que se possa criticar os governos de Lula e Dilma pela eventual opção por um reformismo fraco, no dizer de André Singer, o fato é que se constituíram em ferramentas de resistência ao neoliberalismo em todos os terrenos.  (...) a insistência nessa política sectária faz da ultra-esquerda um aliado objetivo das forças reacionárias nos momentos de grande polarização e disputa.” [2]
      Os quatro argumentos podem impressionar, mas são falsos. Primeiro, a acusação de que a oposição de esquerda cumpre o papel de uma linha auxiliar da oposição de direita é indigna. Não vale tudo na luta política. Linha auxiliar da oposição burguesa é uma  denúncia pesada. Qualquer pessoa pode compreender que na luta política existem mais do que dois campos, situação e oposição. Existem as classes sociais, e elas se expressam através de vários partidos.
       Com esta insinuação absurda- “aliados objetivos de forças reacionárias”- os dirigentes da esquerda petista não estão ofendendo somente  a oposição de esquerda. Estão, também, desafiando a inteligência da sua própria militância, porque estão agredindo a historia do PT.
       O amálgama da oposição de esquerda com a de direita, pode parecer, politicamente, eficaz, mas é desonesto. Um mínimo de decência na polêmica de ideias exige reconhecer que os partidos da oposição de esquerda tem atacado, implacavelmente, a oposição de direita, seja Marina ou Aécio. Tanto, ou até mais do que a candidatura do governo. Zé Maria deu a palavra a Osmarino Amâncio para denunciar que Marina Silva não era herdeira dos ideais de Chico Mendes.
      Se este critério fosse para ser levado a sério, o PT não poderia ter nascido. Porque o PT surgiu desfiando a liderança do MDB e, portanto, dividindo a unidade das oposições à ditadura. Por este critério, a candidatura de Lula em 1982 contra Montoro e Reynaldo de Barros, homem de Maluf, era ilegítima, porque favorecia a vitória do partido da ditadura. Foi essa a acusação que o PCdB e o MR-8 fizeram durante quase uma década, nos anos oitenta, ao PT.
     A premissa de que, quem não está conosco, objetivamente, é aliado dos nossos inimigos é falsa. Mas o pior é que este raciocínio binário vem associado a outro mais perigoso. Realmente, ainda há quem pense que só o PT representa os trabalhadores e seus interesses? Não parece bizarra esta conclusão, se a esquerda petista não pode deixar de admitir que, durante doze anos, os grandes grupos capitalistas não pararam de ver os seus lucros crescerem? Alguém poderia explicar, por exemplo, se o PT é o único partido que defende os trabalhadores, por que o Ministro da Justiça do governo Dilma e dirigente do PT, José Eduardo Cardoso, quando da greve dos metroviários contra Alckmin em São Paulo declarou: “Seja para o que for, o governo do Estado pode contar com o apoio instrumental do governo federal”.[3]
       Em segundo lugar, ser maioria não é o bastante para demonstrar quem tem razão em uma polêmica política. Apenas evidencia qual é a proposta, ou o partido, ou a candidatura que tem maior apoio, em determinada circunstância. O apoio que uma proposta, um projeto, uma candidatura pode ter não prova nada, absolutamente nada, sobre a correção da política defendida.
      Os bolcheviques, uma referência que compartilhamos, foram ínfima minoria na Segunda Internacional em 1914. Foram, também, minoria na Rússia até Agosto de 1917, portanto, durante mais de vinte anos. Parece até um pouco cruel ter que recordar para lideranças da esquerda petista que são minoria, há pelo menos duas décadas dentro do PT, que o fato de terem sido, sistematicamente, derrotados, não invalida as propostas que defenderam.
     Um partido pode sair derrotado, eleitoralmente, e ainda assim obter uma vitória política. Ou o contrário, sair derrotado, politicamente, apesar de uma vitória eleitoral. O PT saiu derrotado das urnas, em 1989, mas fortalecido. Um partido que renuncia ao seu programa para surfar uma onda eleitoral, absorvendo as ideias de outros partidos, pode ter uma excelente votação, mas sairá das eleições, derrotado. Em outras palavras, uma avaliação séria com o objetivo de compreender se um partido foi ou não, politicamente, vitorioso deve ter como critério um exame da defesa ou não do seu programa. Não somente o sucesso eleitoral.
      A audiência do PSTU não é tão residual quanto pensa a esquerda do PT. Os trotskistas estiveram presentes e com um papel destacado em grande parte das lutas recentes mais importantes: construção pesada em Belo Monte no Pará, Comperj no Rio de Janeiro, petroleiros em mais de uma dezena de Estados, professores por todo o país, rodoviários de Porto alegre e Pernambuco, garis e bombeiros no Rio, metroviários e USP em São Paulo, etc. Ao defender uma saída socialista para o Brasil, ainda que tenha poucos votos, o PSTU será politicamente vitorioso, porque esta proposta corresponde às necessidades da revolução brasileira. Derrotados serão os socialistas cujos partidos não estiveram nas lutas, e nas eleições não defenderam o socialismo.
       É fácil compreender porque deve ser aconchegante para dirigentes da esquerda do PT saborearem a perspectiva de uma derrota eleitoral do PSTU como uma confirmação de sua estratégia de hibernação secular. Só que não é. Trata-se de mais um caso clássico de autoengano: uma alegria ilusória. A possível vitória de Dilma, que permanece incerta, se acontecer, significará uma derrota, não uma vitória da esquerda petista. Porque será para a esquerda petista uma vitória de Pirro.[4] Pomar, que é um observador mais lúcido já sentiu o cheiro do perigo.[5]
       Os primeiros cem dias de um possível segundo mandato de Dilma serão suficientes para que fique claro o tamanho do ajuste fiscal que vem por aí, entre outras medidas reacionárias. Claro que uma derrota de Dilma será uma irrevogável derrota da esquerda petista. Mas a dialética do processo é que uma possível vitória de Marina será, também, uma derrota dos trabalhadores, porque Marina fará um ajuste tão grande, senão maior, do que o de Dilma, com as trágicas consequências de aumento do desemprego e queda do salário médio. Em resumo, 2015 não parece nada prometedor.
      Em terceiro lugar, a explicação da provável pequena votação das candidaturas presidenciais do PSTU, PSOL e PCB não reside no seu posicionamento como oposição de esquerda. Aliás, é surpreendente que, um ano depois de Junho de 2013, ainda exista tanta teimosia em admitir que uma parcela majoritária da juventude assalariada urbana com escolaridade mais elevada tenha se deslocado para a oposição.
      Como ficou evidente em sucessivas pesquisas, é na faixa etária até 35 anos, nos setores sociais com renda entre dois e cinco salários mínimos, e entre aqueles com ensino médio completo e superior incompleto que a candidatura Marina Silva tem maior vantagem em relação a Dilma. Imaginar que essa votação corresponde à velha classe média reacionária é, simplesmente, cegueira indefensável. É obtuso. Não foi, portanto, pelo seu posicionamento como oposição ao governo de coalizão com o PMDB de Renan Calheiros, dirigido por Dilma, em nome do PT, que a oposição de esquerda tem poucos votos.
       A baixa votação remete a temas muito mais complexos, e que exigem diferentes níveis de análise para serem compreendidos, mas que o marxismo inspirado em Leon Trotsky caracterizou com a crise de direção do proletariado. Mas como este conceito é muito mal interpretado, para resumir, portanto, simplificando, repousam ainda, entre outros fatores: (a) na avalanche de votos que se dirigiram para Marina como uma mediação que, embora esteja em uma aliança com a oposição de direita, não é assim percebida por esta parcela da juventude trabalhadora que a vê como uma alternativa e, para não poucos, até à esquerda de Marina; (b) no estágio de imaturidade política desta geração de trabalhadores jovens, um processo no qual o PT, depois de 12 anos no poder, tem responsabilidades, como ficou mais uma vez escancarado com o novo escândalo da Petrobras e as “relações perigosas” com o PP de Maluf, o PMDB de Sarney, etc.; (c) na falta de confiança dos batalhões mais maduros dos trabalhadores em suas próprias forças, que leva a que as propostas da oposição de esquerda, ainda que indispensáveis, pareçam demasiado radicais, e o voto no PT, apesar do reformismo quase sem reformas, um mal menor; (d) no fenômeno mais amplo das ilusões no próprio processo eleitoral como via indolor para a transformação econômico-social do país, o que, evidentemente, não é possível. 
      Por último, em quarto lugar, o argumento de que os governos do PT foram um período de resistência ao neoliberalismo é uma fantasia exagerada, portanto, insustentável, em um debate sério. Em outras palavras, pensamento mágico. Expressão pura da força do desejo.
      Resistência ao neoliberalismo? O eixo central da estratégia neoliberal foi o tripé macroeconômico que Lula preservou dos governos de Fernando Henrique. Até as pedras das calçadas da Avenida Paulista sabem que a política de Palocci foi um sonho de consumo da burguesia brasileira. Que a preservação das metas inflacionárias, do superávit fiscal, e do câmbio flutuante, para garantir a segurança da rolagem da dívida pública na mão dos rentistas, foi a estratégia central para blindar a governabilidade dos governos de coalizão dirigidos pelo PT. Não por acaso o governo manteve relações amigáveis com o agronegócio, com as montadoras e a FIESP, com os banqueiros, etc.
      A tentativa de redução da taxa de juros, durante dois anos dos quatro do mandato de Dilma, foi o bastante para levar a esquerda petista, e até o MST, a sonhar com um novo curso desenvolvimentista. Foi, como o último ano demonstrou, só um ensaio, rapidamente, interrompido.
tarem se integrar às manifestações de junho do ano passado, não tiveram papel de relevo e tampouco se constituíram em referência para as massas juvenis que ocuparam as ruas.
Diversos motivos poderiam ser identificados para desempenho tão marginal. Há interpretações sociológicas e políticas de diversas matizes para ajudar a compreender essa fragilidade. Mas creio que existe, ao menos entre seus militantes de boa fé, uma razão de fundo para tamanho isolamento: a política de todas essas correntes é baseada na ideia de hipotética traição do PT ao programa de esquerda e aos interesses do proletariado.
De acordo com esta interpretação, teria ocorrido fenômeno semelhante ao que se passou com a social-democracia européia. O partido de Lula teria assumido o mesmo programa neoliberal do capital financeiro, transitado de armas e bagagens para o campo da burguesia rentista e renunciado à construção de um projeto independente dos trabalhadores. Segundo esse raciocínio, ainda que haja diferenças táticas, o PT e os demais partidos burgueses seriam farinha do mesmo saco.
Esta posição empurra facilmente setores da ultra-esquerda para assumir o discurso falsamente moralista da direita contra o PT e até se alinhar com o conservadorismo quando se trata de fazer oposição ao governo petista.
A absoluta falta de audiência popular à sua narrativa poderia levar estas correntes a refletir sobre a justeza ou não de sua política, mas não o fazem. Prevalecem o dogmatismo, o rancor de ex-petistas e a origem de classe: afinal, a maioria esmagadora de seus quadros tem origem nas camadas médias, onde viceja ambiente generalizado de ódio e desconfiança contra o PT.
O erro fundamental de sua análise consiste em não compreender que a natureza petista e seu papel concreto nada tem a ver com a social-democracia dos dias atuais. Ainda que se possa criticar os governos de Lula e Dilma pela eventual opção por um reformismo fraco, no dizer de André Singer, o fato é que se constituíram em ferramenta de resistência ao neoliberalismo em todos os terrenos.
Estes últimos doze anos foram marcados pela expansão dos gastos públicos, pela adoção de políticas distributivistas, pela ampliação de direitos sociais, pelo aumento do emprego e da renda dos trabalhadores. O Estado está sendo paulatinamente reconstruído como epicentro de um modelo econômico que associa desenvolvimento e criação de um mercado interno de massas, através de mecanismos para a inclusão social. No mais, o país impulsiona política internacional contra-hegemônica e de apoio à integração de blocos que se separam do campo de gravidade do imperialismo norte-americano.
Como se pode ver, pela realidade dos fatos, um caminho absolutamente distinto da social-democracia européia. Não apenas por questões programáticas, mas também pela posição na luta de classes: não é à toa o esforço beligerante do núcleo dirigente da burguesia para derrotar o PT a qualquer preço, aceitando até o risco de inflar uma candidatura de oportunidade como a de Marina Silva.
Há espaço, à esquerda do PT, para forças que pressionem pelo aprofundamento e a aceleração de reformas, buscando forjar um bloco histórico que mude a qualidade do processo de mudanças. Mas essa orientação é impossível para quem vê no PT o inimigo principal ou como integrante do campo político e classista da burguesia. Essa postura visceralmente antipetista não provoca apenas isolamento dentro da esquerda, mas também tornam inacessíveis os ouvidos das dezenas de milhões de trabalhadores, de pobres do campo e da cidade, cuja vida melhorou admiravelmente desde a posse de Lula em 2003.
Por fim, a insistência nessa política sectária faz da ultra-esquerda um aliado objetivo das forças reacionárias nos momentos de grande polarização e disputa. O caso mais emblemático foi o processo do chamado "mensalão", mas muitos foram os episódios políticos e eleitorais nos quais essa lógica se reproduziu. Afinal, se o governo é do PT e esse partido passou para o outro lado, transformado em instrumento da dominação burguesa, contra essa administração deve ser a direção do golpe principal.
Trata-se da fórmula perfeita para a irrelevância e a residualidade      É verdade que o crescimento entre 2004 e 2008, com uma retomada em 2010, no contexto de uma recuperação do capitalismo mundial depois da crise de 2000/01, favoreceu uma redução do desemprego, e esta pressão permitiu uma recuperação do salário médio para os níveis de 1990, antes da posse de Collor. Não houve reformas progressivas durante os últimos doze anos? Sim, houve. Mas muito poucas. Reformismo fraco é uma conceituação muito benigna da parte de André Singer. O aumento do salário mínimo acima da inflação, a elevação do crédito popular com os empréstimos consignados, a expansão do Bolsa Família como política de emergência assistencial, explicam a sensação de alívio depois da degradação das condições de vida pela superinflação dos anos oitenta, e estagnação dos anos noventa. Mas não são o bastante para definir os governos do PT como reformistas. Porque foram muito mais numerosas as contra-reformas.
     Como dizem os portugueses, não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol.
    



(1) ALTMAN, Breno. Por que a ultra-esquerda brasileira é residual? 11/09/2014. In https://www.facebook.com/breno.altman

 (1) POMAR, Valter. Ser de esquerda não é profissão de fé, nem serviços prestados. 10/09/2014, In http://valterpomar.blogspot.com.br/2014/09/ser-de-esquerda-nao-e-profissao-de-fe.html

[3] Fonte: CBN (09/06/2014)

[4] Trata-se de uma expressão que explica como há vitórias que se transformam em derrotas. Por exemplo, quando uma vitória é conquistada ao custo de prejuízos irreparáveis.

[5] POMAR, Valter. Eles têm um plano C. 12/09/2014. In  http://valterpomar.blogspot.com.br/2014/09/eles-tem-um-plano-c.html

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