terça-feira, 26 de agosto de 2014

Comentário sobre texto de Safatle

Uma das coisas mais interessantes nos textos do Safatle é que eles parecem explicar, parecem ser profundos, mas só parecem.

A questão é: por qual motivo o conservadorismo está presente e crescente em todas as partes (não apenas aqui no Brasil, não apenas na América Latina, mas também nos Estados Unidos, na Europa etc.)?

Responder a isto é fundamental.

Infelizmente, Safatle discorre sobre o tema de maneira "genérica". Releiam o texto, do segundo parágrafo até o fim, e digam se o escrito não continuaria válido e poderia ser dito em 1980, 1990 ou 2000.

O conservadorismo, por óbvio, é uma constante.

Seu crescimento mundial, nos últimos anos, têm causas conhecidas. Vou me focar no caso do Brasil.

A questão, para mim, é saber por qual motivo, de 2003 para cá, mais especialmente de 2006 para cá, mais visivelmente de 2010 para cá, o conservadorismo se tornou não apenas constante, mas crescente.

A resposta, acho eu, está nas classes.

O relativo equilíbrio de forças gerou, entre 2003 e 2014, governos que adotaram políticas melhoristas.

Um dos resultados mais visíveis e comentados destas políticas foi a ampliação da capacidade de consumo de milhões de pessoas, aquilo que nossa presidente insiste em chamar de "ampliação da classe média".

Qual o impacto disto na consciência coletiva de milhões de brasileiros e brasileiras?

Em parte importante daqueles que já tinham capacidade de consumo, houve um comportamento reacionário, reação à perda de status.

Em parte importante dos que ganharam capacidade de consumo, cresceu o individualismo (teologia da prosperidade e coisas do gênero), vinculado ao ganho de status.

A grande burguesia, por sua vez, oscilou.

A grande burguesia não foi afetada em seu status. Por isto, aliás, não é difícil encontrar grandes capitalistas que ironizam o reacionarismo da "classe média tradicional".

A grande burguesia, ao longo de parte dos últimos doze anos, ganhou numa ponta (acréscimo do consumo, investimentos e subsídios estatais vinculados) mais do que perdia noutra (crescimento dos salários e do emprego formal, reduzindo uma das fontes do lucro).

Mas agora, neste ano de Deus de 2014, a equação virou. E a maior parte da grande burguesia está decidida a tirar o PT da presidência da República, para com isso diminuir o "custo Brasil" via aumento do desemprego e redução de salários. Isto está vinculado a motivos nacionais e também internacionais.

Para atingir este objetivo, para tirar o PT da presidência, qual a cunha? Como reduzir e dividir o eleitorado popular que vota no PT, Lula e Dilma?

Falar de política? De programa? De planos concretos de governo? Neste terreno, as direitas enfrentam muita dificuldade.

Por isto, cada vez mais optaram por levar o debate para os "valores", para a disputa ideológica. Onde contam a seu favor com a inércia do conservadorismo, mais o conservadorismo reacionário das "classes médias tradicionais", mais o neoconservadorismo dos setores da classe trabalhadora que ampliaram agora sua capacidade de consumo.

A massa da classe trabalhadora evolui politicamente mais rápido do que ideologicamente.

Por isto, na massa dos eleitores de PT, Lula e Dilma, temos progressismo na política e conservadorismo na cultura. Para a direita, é útil pautar o debate neste terreno, da corrupção, da religião, dos valores, dos direitos das mulheres, dos direitos dos homossexuais etc e tal.

A direita encontra terreno especialmente fértil, já que os governos Lula e Dilma fizeram pouca luta político-cultural, não investiram pesado em comunicação democrática, educação libertadora e cultura popular. Claro que se tivessem feito isto, não mereciam ser chamados de melhoristas.

Acho que é nestes termos concretos que o tema deve ser tratado. A abordagem do Safatle não é erudição, é decorrência da dificuldade de tomar partido nas eleições presidenciais.


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VLADIMIR SAFATLE

Bem-vindo ao século 19

Em sua coluna desta segunda-feira (25), Gregorio Duvivier levantou um tema de grande relevância a respeito dos embates eleitorais brasileiros, a saber, o conservadorismo das pautas ligadas a costumes. A seguir as declarações ou o silêncio covarde da maioria de nossos políticos, tem-se a impressão de habitarmos o século 19. Mesmo comparado a seus vizinhos, como Uruguai e Argentina, o Brasil parece em vias de se transformar em um país exemplar no quesito arcaísmos sociais.

Isto não deveria nos impressionar. Um dos espaços fundamentais de atuação do poder é o aparato jurídico que regula os corpos, desejos e sexualidade de seus cidadãos.

Como nos lembram filósofos como Michel Foucault (1926-1984) e Judith Butler, 58, trata-se de decidir que tipos de vidas podem ser vividas, como elas devem ser vividas e quais, ao contrário, serão excluídas como inumanas, "não-naturais", aberrantes.

Por exemplo, quais serão as formas de vida afetiva garantidas pelo direito e quais serão aquelas que o direito não reconhecerá, tratando-as como juridicamente inexistentes. Quais serão as substâncias que posso aplicar a meu corpo, ingerir, tragar e quais serão as que não posso. Que roupa posso usar, quem decide sobre o que se passa no corpo de uma mulher.

A possibilidade de viver de outra forma (e mesmo de morrer de outra forma como, por exemplo, por decisão própria) é vista por alguns como a pior de todas as afrontas, a mais perigosa das sedições políticas. Por isso, uma questão política central diz respeito à visibilidade desta plasticidade própria à vida social.

Uma das formas de coibir tal visibilidade consiste em criar um regime peculiar de permissividade no interior do qual a distinção entre o permitido e o proibido funcionará de maneira flexível.

Por exemplo, um país autoritário não é necessariamente aquele que impede seus cidadãos de fazerem certas práticas. Todos nós sabemos que o aborto é legal no Brasil. Todo mundo conhece o endereço de uma clínica de aborto, inclusive a polícia, e se a filha adolescente do deputado conservador engravidar sem querer ele será o primeiro a aparecer por lá. O que é proibido no Brasil é reconhecer tal prática. Proibido é dar visibilidade, é quebrar o discurso consensual, ao menos na classe política. Assim, o autoritarismo encontra-se no fato de aceitarmos a lógica do: "pouco importa o que você realmente faz, desde que você continue a falar e dar a impressão de agir como quem defende nossos valores'".

Desta forma, o Brasil conseguiu protagonizar o espetáculo deprimente de uma política que não produz mudanças, mas repete compulsivamente os arcaísmos de sua sociedade.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

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