terça-feira, 13 de agosto de 2013

Muito trabalho pela frente

(este texto é uma versão do texto publicado pela revista eletrônica Teoria e Debate)

Entre os dias 29 de julho e 4 de agosto de 2013, a capital paulistana recebeu o XIX Encontro do Foro de São Paulo, para debater como aprofundar as mudanças e como acelerar a integração regional latino-americana e caribenha. Antes, o Brasil já recebera o Foro em três outras ocasiões: 1990, 1997 e 2005.
O XIX Encontro foi organizado por partidos brasileiros que integram o Foro de São Paulo: o Partido dos Trabalhadores, o PC do B, o PSB, o PDT, o PPL e o PCB.
Formalmente, o PPS também é integrante do Foro de São Paulo, mas o último Encontro de que participou foi em 2010, em Buenos Aires.
Vale dizer, também, que o PCB divulgou um documento, assinado por seu Comitê Central, acusando o Foro de estar hegemonizado pelo reformismo. Quanto ao PSB e ao PDT, participaram com baixo perfil das atividades. Quem mais se empenhou, na organização e/ou na mobilização, foram o PT, o PCdoB e o PPL.
O XIX Encontro do Foro foi o primeiro realizado depois da morte do presidente venezuelano Hugo Chávez e da eleição de seu sucessor, Nicolas Maduro. Dois episódios que deixaram claro, para os que resistiam a perceber e reconhecer, que estamos em uma nova etapa política na região, marcada principalmente pela contra-ofensiva da direita local, apoiada por seus aliados nos Estados Unidos e Europa.
Para derrotar esta contra-ofensiva da direita, não bastam medidas táticas: é necessário, também, um salto de qualidade no processo de mudanças em cada país e também no processo de integração regional.
Isto se faz necessário e urgente porque, além da contra-ofensiva da direita, vivemos também o esgotamento do "padrão" que caracterizou a primeira etapa do ciclo progressista e de esquerda.
Esta primeira etapa se estendeu das eleições de Chávez e de Lula (1998-2002), até a eclosão da crise internacional e a posse de Obama (2008).
A partir de então, entramos em outra etapa, na qual estamos hoje, marcada exatamente pela combinação entre a crise internacional, a contra-ofensiva da direita e o esgotamento daquele “padrão", que basicamente consiste em redirecionar também para os setores populares a renda e a riqueza geradas em nossas sociedades.
Este redirecionamento foi possível de fazer, por algum tempo e com algum nível de êxito, como demonstra a comparação entre os indicadores desta etapa vis a vis o período neoliberal antecedente, em qualquer dos países governados pelas forças progressistas e de esquerda.
Ocorre que a organização política, social e econômica capitalista hegemônica em nossa região não permite --especialmente num contexto de crise internacional-- a ampliação continuada da igualdade, da democracia, da soberania e da integração regional.
É por isto que, à medida que o tempo passa, tende a diminuir o ritmo e a qualidade das “mudanças”, reafirmando-se as determinantes do status quo: a dependência, a democracia restrita e a desigualdade. A crise internacional não causou, mas certamente acelerou esta tendência ao esgotamento do padrão.
Por isto, falar em continuar as mudanças exige mudança de padrão. É isto que nos leva a falar da necessidade urgente de realizar reformas estruturais em nossas sociedades, que nos permitam ampliar qualitativa e rapidamente a produtividade social, o bem-estar, a democracia política e a integração regional. E a “sustentabilidade” destas reformas estruturais depende, em boa medida, da integração regional.
Destaco que a necessidade de mudança de padrão também se aplica para países como a Venezuela, altamente dependente da produção e comercialização do petróleo, o que é insuficiente frente às necessidades econômicas, sociais, políticas e militares da República Bolivariana.
O XIX Encontrou ocorreu logo depois da visita do Papa Francisco ao Brasil. Os governantes da região comemoraram um papa de nacionalidade argentina. E setores da esquerda regional chegam a alimentar expectativas positivas, o que é compreensível se lembrarmos do Papa anterior.
Mas há, também, setores muito preocupados, por três motivos: primeiro, devido ao papel da Igreja católica durante a ditadura militar argentina; segundo, devido ao papel jogado por outro Papa no combate ao socialismo, tal como existia no Leste Europeu; terceiro, devido à crescente influência dos conservadores no interior da igreja católica.
Reforçando estes motivos de preocupação, recordo o papel da Democracia Cristã no pós-Segunda Guerra, para neutralizar e combater a esquerda socialdemocrata e comunista em vários países europeus.
Durante o XIX Encontro, também foi muito discutido o processo de mobilização social ocorrido no Brasil no mês de junho, seus impactos presentes e futuros.
Havia uma grande curiosidade a respeito, especialmente por parte daqueles que ainda analisam a política regional em termos de "duas esquerdas". Vale dizer que um dos ensinamentos que se pode extrair das mobilizações de junho é que a direita brasileira, como a venezuelana, disputa a mídia, as urnas e agora também as ruas conosco. E que as esquerdas, apesar das diferenças existentes entre os vários países da região, enfrentam alguns dilemas muito semelhantes.
Sobre a integração regional, ficou claro mais uma vez tratar-se de um processo em disputa.
Primeiro, disputa contra o imperialismo, que deseja uma integração subalterna às metrópoles, como no projeto da Alca.
Segundo, disputa contra a grande burguesia, que deseja uma integração focada nos mercados e no lucro de curto prazo, o que levaria a uma integração que aprofundaria as disparidades regionais e sociais, o que por sua vez acabaria nos levando a uma integração subalterna aos gringos.
Terceiro, existe ainda a disputa, no campo progressista e de esquerda, entre diferentes ritmos e vias de desenvolvimento e integração. Um de nossos desafios é, precisamente, evitar que estas diferenças convertam-se em antagonismos --o que até agora temos conseguido.
A integração é, portanto, um processo “a quente”, no curso do qual a esquerda precisa operar, simultaneamente, no plano político, econômico e cultural. Para isto, os governos são fundamentais, mas insuficientes. Os partidos, assim como os movimentos sociais e o mundo da cultura são essenciais.
Outro dos desafios da integração, para além daqueles provocados pelo imperialismo estadounidense e europeu, pelos governos de direita e pelas burguesias locais, é a relação com a China, especialmente neste momento de inflexão em direção ao seu mercado interno.
 Esta inflexão pode ter vários efeitos colaterais, entre os quais nos fazer voltar ao "estado normal" de economias dependentes, vítimas de desigualdade crescente nos termos de troca entre produtos de baixo e de alto valor agregado. Risco ao qual devemos responder, não reforçando o reclamo anti-China estimulado pelas “viúvas” dos EUA, mas sim optando para valer por um ciclo de desenvolvimento econômico interno e regional, impulsionado pelo Estado e baseado na ampliação de infraestruturas, políticas universais e capacidade de consumo, caminho para o que já foi dito antes: a ampliação qualitativa, rápida e “sustentável” da produtividade social, do bem-estar, da democracia política e da integração regional.
Observando de conjunto a situação, constata-se um acirramento da luta de classes na região, um acirramento no conflito entre alguns países da região, bem como um acirramento de nossa relação com as potências imperialistas.
O que foi descrito até agora tem como pano de fundo o deslocamento do centro geopolítico do mundo, do Ocidente em direção ao Oriente; o declínio da hegemonia dos Estados Unidos; e a crise internacional do capitalismo.
Trata-se de processos em curso, de desfecho incerto e que ainda podem ser revertidos em favor das classes sociais e dos Estados que hegemonizaram o mundo no período neoliberal.
Independente do desfecho, as três variáveis citadas criam um ambiente de instabilidade e crises, sociais, políticas e militares. O que conduz à formação de blocos regionais, inclusive enquanto instrumentos de proteção.
Este é, precisamente, o divisor de águas no continente americano: o conflito entre dois grandes projetos de integração regional. Por um lado o projeto de integração subordinada aos Estados Unidos, simbolizado pela Alca (Área de Livre Comércio das Américas); por outro lado, o projeto de integração autônoma, simbolizado pela Celac (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos).
O projeto de integração autônomo não é, em si, socialista. Mas a integração é uma condição fundamental para o sucesso econômico e político de uma transição socialista.
A integração permite limitar as ações que o imperialismo e as classes dominantes de cada país promovem, de maneira permanente, contra a esquerda latino-americana.
A integração, por outro lado, cria a “economia de escala” e a “sinergia” indispensáveis para superar as limitações materiais, produtivas, econômicas, que dificultam a transição socialista em cada país da região.
Desde 1998, as forças favoráveis à uma integração autônoma da região conquistaram eleições em importantes países da região. Mas a partir de 2008, como já dissemos, começou uma contra-ofensiva das forças favoráveis à integração subordinada aos Estados Unidos.
Hoje vivemos uma situação de “equilíbrio relativo” entre os dois projetos de integração (autônoma e subordinada).
Politicamente, uma situação de equilíbrio relativo pode ser favorável às forças da esquerda. Mas historicamente, uma situação de equilíbrio relativo tende a favorecer as forças que representam o status quo, pois o equilíbrio significa a continuidade da ordem hegemônica, que em nosso caso ainda é capitalista, dependente e neoliberal.
Neste sentido, é fundamental buscar caminhos para seguir avançando.
É para isto que apontam as resoluções do XIX Encontro, quando falam em aprofundar as mudanças e acelerar a integração; ou quando falamos em buscar vitórias no ciclo eleitoral que começa em novembro de 2013 (Chile e Honduras) e prossegue até dezembro de 2014 (Bolívia); ou, ainda, quando falamos de fortalecer as lutas sociais, os partidos de esquerda e os governos progressistas da região.
Entretanto, para seguir avançando há que derrotar obstáculos poderosos. Vários deles foram objeto de discussão e deliberação pelo XIX Encontro, cujas resoluções, Declaração Final e Documento base devem ser estudados com atenção.
Mas há um obstáculo que não foi adequadamente debatido, a saber, nosso déficit teórico em pelo menos três grandes temas: o balanço das tentativas de construção do socialismo no século XX; a análise do capitalismo no século XXI; e a estratégia socialista, na América Latina de hoje.
Quando falamos em déficit teórico, nos referimos simultaneamente à necessidade de superar interpretações equivocadas e à necessidade de construir interpretações novas, que sirvam como núcleo central de uma cultura socialista de massas para este século XXI.
O imaginário da esquerda latino-americana é ainda fortemente influenciado por paradigmas que certamente contribuíram muito para que chegássemos até aqui; mas que, ao mesmo tempo, criam algumas dificuldades quando se trata de enfrentar os desafios presentes e futuros.
Ainda é muito forte, entre nós, a influência de paradigmas oriundos do idealismo religioso, seja na versão cristã, seja na versão “pachamamica”. Influências que levam alguns a confundir marxismo com “machismo”, como se a certamente indispensável dose de “sacrifício” e “valentia” fosse suficiente para superar qualquer obstáculo.
Outras fortes influências são o movimentismo, por um lado, e por outro lado o paradigma revolucionário representado pela heroica Cuba de 1953-1959, em boa medida representada na figura do Che.
Finalmente, há uma fortíssima influência tanto do nacional-desenvolvimentismo (base para defesa de “alianças estratégicas” com setores da burguesia), quanto do socialismo de Estado (fonte de muitas das dificuldades para entender o papel do mercado na transição socialista).
A formação de uma cultura socialista de massas, bem como a construção de um programa e de uma estratégia adequados ao período histórico que vivemos, exigirá superar (no sentido dialético do termo, o que implica também em preservar num patamar distinto) estas influências.
Nesta tarefa de superação, será muito útil estudar duas experiências históricas e o debate travado a partir delas: o cercano Chile da Unidade Popular (1970-1973) e a lejana China das reformas (1978-2013).
Afinal, na América Latina e Caribe de hoje vivemos, no fundamental, experiências nas quais não se tomou o poder revolucionariamente; onde se está tentando construindo um novo poder através de uma complexa guerra de posições; onde é fundamental impulsionar o desenvolvimento produtivo; mas onde também é fundamental definir a natureza deste desenvolvimento e qual o papel que o capitalismo pode e deve jogar nele.
Especificamente no caso do Chile, o aniversário dos 40 anos do golpe de Estado será uma oportunidade ímpar para discutir os caminhos para a construção do “poder popular” e da “área de propriedade social”, propostas pela Unidade Popular e que constituem temas atuais para as esquerdas agrupadas no Foro de São Paulo.

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