quinta-feira, 23 de maio de 2013

Texto sobre formação escrito a pedido de jornal francês

Em 1989, o Partido dos Trabalhadores quase venceu a eleição para presidente do Brasil. O slogan de nossa campanha era “sem medo de ser feliz”. Mas o medo de ganhar assombrava parte do petismo.

Este medo tinha várias razões de ser. Entre elas, a estrutura do PT, insuficiente tanto em número quanto em capacitação, como evidenciavam nossas dificuldades nas administrações municipais, na construção partidária, nos movimentos sociais e no debate ideológico.

Sem quadros e militantes capacitados, a pretensão de disputar a hegemonia vira ficção. E sem  igualdade de acesso à formação e à informação, a democracia interna vira fábula. Razões como estas faziam (e fazem) o trabalho de formação política ganhar dimensão estratégica para o PT.

Data de 1985 a constituição de um Grupo de Trabalho responsável pela realização de diversos tipos de cursos, seminários, palestras e reuniões, visando levantar as necessidades reais do PT em termos de formação. Um marco inicial desse processo foi a realização, em março de 1986, da 1º Plenária Nacional de Formação Política, com a presença de dezesseis estados (o Brasil hoje tem 27 estados).

Outro marco foi a criação, em julho de 1986, do Instituto Cajamar (Inca). O Instituto realizou sua primeira atividade - um seminário sobre participação popular na Constituinte - em dezembro de 1986. A partir de janeiro de 1987, iniciaram-se os cursos de capacitação de quadros intermediários, voltados para dirigentes sindicais, lideranças populares, militantes partidários e monitores de formação política, que atingiram cerca de 2.700 militantes, entre os quais aproximadamente 1.100 enviados diretamente pelo PT. A partir de 1989, passamos também a realizar cursos de formação de formadores. Além de uma infinidade de seminários e debates realizados ao longo de todos estes anos.

Em 1990, o 7º Encontro do PT decidiu “preparar a criação de uma Escola Nacional de Formação”. E, em 1996, foi criada a Fundação Perseu Abramo.

A consolidação de um sistema nacional de formação, que além de formar nossos quadros visava também impulsionar uma atividade permanente de reflexão e elaboração teórica. implicava em enfrentar duas posições simetricamente incorretas: por um lado a rejeição da teoria, que aparecia sob diferentes etiquetas: o empirismo, o basismo, o obreirismo, o economicismo, o praticismo, o culto à ação; por outro lado, a transformação da teoria em doutrina escolástica, em teologia.

Um sistema de formação implicava, também, num debate pedagógico, onde se confrontavam as concepções ditas “bancárias” (em que o conhecimento era “depositado” na cabeça dos educandos) com aquelas oriundas da educação popular e da pedagogia de influência marxista. E o debate pedagógico remetia para a discussão do método, ou seja, do processo de conhecimento, tema desenvolvido pelo documento A política de formação do PT, elaborado em 1988.

Outro aspecto é a multiplicidade de referências teóricas, presentes não apenas na militância, mas também entre os formadores. Dentro e fora do guarda-chuva marxista, há um sem-número de referências políticas, teóricas, metodológicas e pessoais, percebendo-se a influência da escola clássica de formação, desenvolvida pelos comunistas; das experiências de formação sindical e da educação popular e, ainda, uma forte presença da educação tradicional.

Nosso sistema tinha que levar em conta a enorme demanda por formação, que exigia não apenas a capacitação de quadros, mas também o desenvolvimento de uma massiva campanha de formação de base, utilizando intensivamente novos recursos pedagógicos, dando conta de variado público e  amplo leque de temas. A diversidade começava pelas características culturais e regionais do Brasil, passa pelos diferentes níveis de militância (filiados, ativistas. quadros intermediários, dirigentes) e áreas de inserção (movimentos sociais, estrutura partidária. frente institucional); incluindo ainda os diferentes graus de compreensão da proposta petista, influenciados pela época e pelas razões que motivaram cada um a se filiar ao PT.

A escola de um partido que se propõe a dirigir o processo de construção da nova sociedade deve abordar questões ideológicas, culturais, morais, éticas, grupais, interpessoais, sexuais e individuais. E debater fenômenos como o individualismo, a corrupção moral, o acomodamento e o mandonismo.

A formação política não é o único meio de combater esses desvios, que exigem vigilância constante e uma profunda democracia - mesmo porque é nos círculos dirigentes que eles se manifestam primeiro e mais fortemente.

Não existe uma vacina definitiva contra esses perigos. É preciso lembrar que eles brotam das condições de vida da nossa sociedade, exigindo de nossa parte um combate permanente, na sociedade e no partido. Estão aí as experiências de certas igrejas para mostrar que a doutrinação ideológica não é um antídoto contra a hipocrisia, a cupidez e o moralismo.

O que você acaba de ler foi, no fundamental, escrito no ano de 1990 e reflete o que fizemos e o que debatemos na década dos 1980. Já na década de 1990, a situação da formação política petista mudou significativamente.

A ofensiva neoliberal, a crise do socialismo, o refluxo dos movimentos sociais e a progressiva concentração da atividade partidária nos processos eleitorais gerou um impacto fortemente negativo sobre o trabalho de formação política.

A lógica e as necessidades de um partido militante são muito distintas daquelas predominantes num partido integrado por filiados-eleitores. O trabalho de formação política foi sendo abandonado ou, quando preservado, assumiu ares de “capacitação”: como governar, como legislar, como explicar quais as nossas políticas públicas.

Assim, da mesma forma como ao longo dos anos 1980 o Partido foi progressivamente dando importância ao trabalho de formação política, nos anos 1990 ocorreu de fato (mas nem sempre de direito) o movimento inverso.

Esse processo deve ser visto no contexto da disputa que a burguesia desenvolve contra nosso Partido, num movimento que inclui não apenas tentativas de destruição, mas também tentativas de cooptação. A cooptação visa que nosso Partido vá se aproximando das concepções ideológicas e das  práticas tradicionais da política brasileira, como o caciquismo, a promiscuidade entre os partidos e o poder econômico, a demagogia eleitoral, a corrupção, a violência e o abuso de poder econômico nas relações internas etc...

Nessas condições, a formação política é decisiva, para capacitar a militância de base a defender o Partido e decidir sobre seus rumos. Claro que a formação também é um espaço em disputa, sendo necessário estabelecer procedimentos que garantam a pluralidade, o espaço para o debate, a convivência entre as diversas forças políticas.

O que se acabou de ler é uma adaptação de um discurso feito em 1996, durante uma reunião para debater os rumos da formação política no PT. Foram necessários muitos anos mais para que, em 2007, o III Congresso do PT criasse a Escola Nacional do Partido, uma estrutura vinculada a Fundação Perseu Abramo, retomando as decisões do 7o Encontro de 1990.

Hoje, qual a situação?
O PT, como a esquerda latinoamericana e caribenha, segue chamado a enfrentar três grandes déficits teóricos: nossa reduzida compreensão do capitalismo do século XXI; nossa incompleta análise das tentativas de construção do socialismo no século XX (e, poderíamos acrescentar, também das experiências desenvolvimentistas, nacionalistas revolucionárias e social-democratas); e a necessidade de uma estratégia que articule as dimensões regional e nacional.

Vale dizer que estes déficits teóricos terão que ser enfrentados a quente, nos marcos de uma crise internacional marcada por profunda crise do capitalismo, pelo declínio da hegemonia dos Estados Unidos, pela emergência de novos centros de poder, pela instabilidade sistêmica, por profundos conflitos sociais, agudas crises políticas e conflitos militares cada vez mais perigosos.

América Latina e Caribe fazem parte deste mundo em crise e sofrem os efeitos desta situação. Mas também somos uma região em que, desde o fim do século XX, início do século XXI, está em curso un processo de mudanças que oferece esperanças e alternativas para este mundo em crise.

A situação internacional, em especial a contraofensiva dos Estados Unidos e de seus aliados, exige reação rápida, eficaz e conjunta dos partidos, movimentos sociais e governos progressistas e de esquerda, no sentido de acelerar a integração regional e aprofundar as mudanças que estão em curso na região.

O complicador é que entramos, em nossa região, numa etapa em que os ventos da luta política e social não sopram mais necessariamente a nosso favor. Motivo pelo qual o empirismo e o doutrinarismo precisam ceder lugar para a análise concreta da situação concreta, não como  operação monástica de uma elite intelectual, mas sim enquanto movimento cultural de massas, em que milhões de pessoas se envolvam na construção de um pensamento socialista de massas, que articule o mundial, o regional e o nacional; o classista, o democrático e o popular; a luta social, a ação institucional e o debate ideológico; o passado, o presente e o futuro.

Noutras palavras: indústria cultural de novo tipo, educação pública de novo tipo, mídia de massas de novo tipo, Estado de novo tipo para uma politica e uma sociedade de novo tipo. É nesses marcos que se deve pensar o trabalho de educação política da militância dos movimentos sociais e dos partidos políticos na região.

No caso específico do Partido dos Trabalhadores, temos um conjunto de experiências acumuladas no terreno do que chamamos de “formação política”, inclusive a experiência de fazer quase nada a respeito, o que nos causou imenso prejuízo e que provocou como reação, hoje, uma retomada do trabalho nacional de formação.

Como o PT é um partido plural, socialmente, politicamente e ideológicamente, nada é simples neste terreno. E como nossa ação é fortemente marcada pela lógica pragmática da dinâmica eleitoral, governamental e parlamentar, nada é exatamente como gostaríamos que fosse. Mas mesmo os mais pragmáticos reconhecem que se o Partido não retomar seu processo de formação de quadros, em larga escala e profundidade, enfrentaremos uma regressão sem tamanho.

Neste processo de formação de quadros, entram em conflito as grandes correntes ideológicas presentes no PT e também em toda a esquerda brasileira hoje: o social-liberalismo, o nacional-desenvolvimentismo, o reformismo social-democrata, o socialismo revolucionário.

Entram em choque, também, os interesses de curto prazo (ganhar eleições e outras lutas imediatas, exercer bons mandatos parlamentares, fazer governos de qualidade e capazes de reeleição, manter em funcionamento a “máquina partidária”) e as orientações de médio e longo prazo (sobre nosso projeto de sociedade, sobre nosso caráter de classe, sobre nossa visão de mundo).

Fica patente, finalmente, as limitações de nossa intelectualidade. Décadas de neoliberalismo não influiram apenas no ideário hegemônico, mas também rebaixaram o patamar cultural geral da sociedade, da esquerda inclusive.

Seja como for, o Partido dos Trabalhadores do Brasil está buscando implementar projetos de educação política de nossos quadros. Com que sucesso e em que medida isto vai nos ajudar na luta política e na resolução dos déficits teóricos apontados antes, isto só o tempo dirá.


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