terça-feira, 18 de outubro de 2011

2003 e os próximos anos

O texto abaixo foi escrito e divulgado durante o ano de 2002. Discutia como tratar o tema do socialismo, num momento de campanha eleitoral presidencial.


Nos debates entre as chapas que disputam a direção nacional do PT, tem aparecido com frequência o seguinte questionamento, dirigido à esquerda petista: "voces estão propondo que o PT defenda,  nas eleições presidenciais, um programa socialista?"

Nós entendemos que é obrigação básica de um partido socialista, defender o socialismo. A maneira de fazê-lo pode ser discutida, mas deixar de fazê-lo equivale a abandonar o socialismo.

Nas condições atuais, um partido como o nosso tem três maneiras básicas de incorporar o socialismo em sua ação prática. Falemos inicialmente de duas delas:

Primeiro, como tema de estudo, formação política, debates e publicações de circulação dirigida aos setores de vanguarda. Na terminologia utilizada no início do século XX, chamava-se isso de "fazer propaganda do socialismo" (ao contrário de hoje, entendia-se por "propaganda" divulgar "muitas idéias para poucas pessoas").

Segundo, como tema de mobilização, para as massas, em jornais sindicais, em panfletos dirigidos aos trabalhadores em geral, em mensagens no horário eleitoral gratuito, em pronunciamentos de nossos parlamentares e dirigentes. Na terminologia utilizada no início do século XX, chamava-se isso de "fazer agitação do socialismo". Hoje, o termo mantém o mesmo significado: divulgar "poucas idéias para muitas pessoas".

Em nossa opinião, a ação do PT deve incluir o socialismo, tanto na dimensão de propaganda quanto na dimensão de agitação.

Os moderados parecem estar de acordo com a primeira parte: um exemplo disso é seu apoio ao ciclo de debates "Socialismo e democracia", promovido pela Fundação Perseu Abramo. Mas não estão de acordo com a segunda parte: um exemplo disso são as escassas referências ao socialismo, feitas tanto na tese "Outro Brasil é possível", quanto no "programa" do Instituto da Cidadania. Outro exemplo é o desaparecimento do tema nas campanhas eleitorais hegemonizadas pelo setor moderado do PT.

Num resumo: os moderados estão dispostos a falar de socialismo para a vanguarda.  Naturalmente, seu "socialismo" tem muito de social-democracia (capitalismo com bem-estar social) e muito pouco de uma sociedade sem Estado, sem classes, sem opressão nem exploração, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção.

Nós queremos falar de socialismo também para as massas (que, aliás, parecem estar dispostas a ouvir algo a respeito: 50% dos entrevistados numa pesquisa Ibope/CNI afirmaram que o socialismo deveria ser implantado no Brasil).

Mas existe outra diferença fundamental entre moderados e radicais, que reside na terceira maneira de abordar o socialismo na ação prática do PT: o socialismo como objetivo estratégico.

Para falar disso, precisamos precisar o que nós entendemos por socialismo e estratégia. Friso: o que nós entendemos. Outras correntes políticas manejam outras definições e, portanto, podem dizer as mesmas coisas que nós, com outras palavras; ou podem dizer coisas diferentes, com as mesmas palavras.

Sob a palavra socialismo, podemos designar: uma teoria/ideologia/visão de mundo; um movimento político-social; e um tipo de sociedade.

Quando falamos de uma "sociedade socialista", podemos estar nos referindo a uma sociedade sem classes, sem Estado, sem exploração nem opressão (e nesse caso, o mais adequado é falar de comunismo); ou podemos estar nos referindo ao tipo de sociedade que existirá na transição entre o capitalismo e o comunismo.

Quando dizemos que o socialismo é nosso objetivo estratégico, estamos querendo dizer que todas as nossas ações visam atingir este objetivo: construir uma sociedade sem classes, sem Estado, sem exploração nem opressão.

Para que este objetivo seja atingido, os trabalhadores precisam realizar uma revolução política e social, destruir o capitalismo e construir a nova sociedade.

Falamos de revolução "política e social" para ressaltar que, ao contrário da burguesia, os trabalhadores precisam de poder político para conduzir sua revolução social.

Assim, o principal objetivo de uma estratégia socialista (ou seja, de uma estratégia que tem por objetivo uma sociedade socialista) é a conquista do poder político pelos trabalhadores.

O processo de conquista do poder político pode assumir várias formas. Em qualquer delas, entretanto, ocorre um processo similar: de força politicamente minoritária, os trabalhadores ampliam suas posições até tornarem-se força politicamente majoritária.

Esse processo pode ser de curta duração, como ocorreu entre 1917-21, na Rússia. Ou de longa duração, como ocorreu entre 1927-1949, na China. Incluirá, em maior ou menor medida, formas "pacíficas" ou "violentas", "lutas de massa" ou "disputas eleitorais" e assim por diante. E pode ser mais ou menos reversível (vide a rapidez da derrota na Nicarágua, em contraste com a situação em Cuba).

A estratégia de um partido socialista deve, exatamente, indicar qual o caminho para o poder ou, noutros termos, qual a combinação correta entre os diferentes elementos que integram a luta de classe, tendo como objetivo conquistar o poder para os trabalhadores.

A estratégia é um plano de guerra, abstrato, que se materializa num conjunto de batalhas, concretas. A tática é a materialização da estratégia num determinado espaço-tempo (ou, para ser mais preciso, numa determinada correlação de forças entre as classes sociais).

Por isso, não basta que a estratégia seja "socialista"; a tática tem que apontar para este rumo. O PCdoB, por exemplo, tem uma estratégia socialista; mas sua "tática" de "união nacional" contra o neoliberalismo aponta para outra estratégia, uma estratégia etapista.

Assim, uma questão relevante que deve ser respondida é: que lugar a batalha de 2002 ocupa na estratégia de luta pelo socialismo no Brasil?

Como em outras batalhas táticas, em 2002 devemos ampliar a consciência e a força dos trabalhadores e seus aliados, reduzindo a força dos grandes capitalistas.

No final da batalha de 2002, nossa consciência e força devem traduzir-se nos votos obtidos pelos partidos de esquerda, no número de deputados e senadores que vamos eleger, no número de governos estaduais que vamos conquistar e no resultado que obtivermos na disputa pelo governo federal.

Mas não só isso: qual o grau de consciência dos trabalhadores, qual seu nível de organização, são elementos tão ou mais decisivos para sabermos se fomos derrotados ou vitoriosos. Derrotas eleitorais podem ser vitórias políticas e vice-versa.

Ocorre que o governo federal ocupa um lugar muito especial no esquema de poder que sustenta o capitalismo no Brasil. Um governo federal de esquerda –mesmo que com intenções meramente "reformistas", de melhorar a vida do povo sem tocar no capitalismo— introduz um fator de perturbação muito grande na estabilidade do capital em nosso país.

Nesse sentido, a batalha tática de 2002 pode (friso: pode) adquirir um sentido tático-estratégico. Ou seja, pode ser aquela batalha que decide, não a guerra, mas o curso da guerra.

Se os nazistas tivessem destruído a força expedicionária britânica em Dunquerque, ou se tivessem conquistado Stalingrado, a Segunda Guerra talvez não tivesse terminado, mas seu curso (e talvez seu resultado) seria muito diferente.

De forma semelhante, se a esquerda vencer as eleições de 2002, a luta pelo socialismo não terá chegado ao fim (longe disso). Mas o curso desta luta assumirá uma nova forma: o governo federal terá mudado de mãos e poderá ser um instrumento a mais na disputa pelo poder.

E esta "disputa pelo poder" estará muito mais próxima do que está hoje. Nos referimos ao controle das forças armadas, do poder econômico, dos meios de comunicação e da política internacional do país.

O grande capital tem consciência disso. Mesmo acreditando na sinceridade reformista de grande parte da esquerda brasileira, os grandes empresários não estão dispostos a correr o risco de ver a esquerda "administrar a crise do capital".

Infelizmente, predomina na esquerda brasileira um raciocínio meramente tático sobre 2002 (quando muito, uma batalha sobre o modelo neoliberal), em detrimento de um raciocínio tático e estratégico (uma batalha sobre o modelo neoliberal e sobre a natureza da formação social brasileira).

Mas qual seria a consequência tática de um raciocínio tático-estratégico? Noutras palavras, o que muda em nossa linha para 2001-2002, se encaramos as eleições de 2002 de um ponto-de-vista tático e estratégico?

A julgar pelo que ouvi em alguns debates, os moderados acham que, se prevalecer a posição dos petistas radicais, nossa campanha presidencial será totalmente dedicada a falar do socialismo.

Evidentemente, achamos que uma boa agitação do socialismo ajudará o desempenho de um candidato de esquerda. Mas o centro de nossa campanha não estará na divulgação abstrata do socialismo. Em nossa opinião, uma campanha eleitoral orientada por um raciocínio estratégico socialista deve enfrentar, de maneira concreta, os problemas colocados para os trabalhadores e seus aliados.

Quais problemas são esses? Num resumo: as necessidades básicas dos trabalhadores (trabalho, salário, teto, saúde, educação, terra etc.).

Em tese, tanto moderados quanto radicais defendem uma campanha eleitoral que trate destes problemas e um governo que os resolva. Mas a partir daí começam as diferenças:

Primeiro, de contexto. Nós achamos que, num momento de brutal crise (internacional e nacional, do neoliberalismo e do capitalismo), só medidas radicais darão conta de resolver os principais problemas dos trabalhadores.

Segundo, de aliados. Nós entendemos que o grande empresariado será um adversário de todas as medidas que visam atender as necessidades dos trabalhadores.

Terceiro, de medidas. Nós defendemos que o atendimento das necessidades dos trabalhadores exige "expropriar" parte do patrimônio dos capitalistas –e não apenas tributar ou controlar o uso deste patrimônio.

Assim, nosso programa para 2002 não tem por "objetivo" o socialismo. Nosso programa tem por "objetivo" melhorar a vida dos trabalhadores. Mas para melhorar a vida do povo, é preciso transferir renda, riqueza e poder, dos imperialistas, dos latifundiários e do capital monopolista, para os demais setores da sociedade. Noutras palavras, é preciso adotar medidas de sentido socialista.

Nesse sentido, trata-se-ia de um "programa socialista"?

Afinal, é o programa que os socialistas apresentam para resolver os problemas do povo brasileiro. Além disso, inclui entre suas medidas algumas "expropriações" (suspensão do pagamento da dívida, reestatizações, controle público do setor financeiro, quebra do monopólio dos meios de comunicação etc.).

Pode-se chamar este programa de "socialista", desde que não se cometa a seguinte confusão: não se trata de um programa de erradicação do capitalismo.

Até porque a erradicação das relações capitalistas de produção exigirá décadas (ou séculos) de transição socialista. Se trata "apenas" de um programa anti-monopolista, anti-imperialista e anti-latifundiário.

Nosso programa é compatível com os interesses de vastos setores de pequenos e médios capitalistas. Se estes setores virão conosco ou não, é um problema de luta política. A mesma luta política que definirá se os próprios trabalhadores virão ou não conosco. Mas dizer que se trata de um "programa socialista" pode levar a crer que todos os capitalistas, inclusive os pequenos e médios, estarão em sua mira.

Portanto, seja para não criar confusões sobre os objetivos de curto prazo do programa; seja para não perder aliados, achamos necessário acentuar o conteúdo das medidas (anti-latifundiárias, anti-imperialistas, anti-monopolistas).

Na verdade, se existisse no Brasil um partido que expressasse os interesses dos chamados setores médios, ele poderia defender as mesmas medidas que defendemos para 2002. Em si, fazer a reforma agrária, estimular o mercado interno, suspender o pagamento das dívidas financeiras, estatizar empresas de  interesse público e colocar fortes restrições ao capital financeiro e monopolista não constituem (em si!) medidas socialistas.

Até porque o que denominamos acima de "expropriação" dos capitalistas privados constitui, a rigor, uma "nacionalização" ou "estatização". O uso que se fará desta propriedade pública-estatal dependerá da disputa política.

Várias revoluções burguesas, vários governos nacional-desenvolvimentistas e até mesmo governos de ocupação (como os EUA no Japão, após a Segunda Guerra) tomaram algumas daquelas medidas.

Por isso, conceitualmente falando, o melhor continua sendo dizer que nosso programa para 2002 é democrático, popular e articulado com o socialismo.

Os moderados acham que este é um programa "revolucionário". Trata-se de um exagero, menor é claro do que o cometido por alguns moderados, para quem o programa do Instituto da Cidadania é o programa anti-capitalista "possível".

Não existe um programa abstratamente "revolucionário", existem situações revolucionárias. Nestas situações, uma medida que isoladamente não apresenta risco algum, pode tornar-se a síntese  programática, o "grito" de uma mudança revolucionária. Lembremo-nos de pão, paz e terra; terra e liberdade; nova democracia etc.

O Brasil não vive, hoje, uma situação revolucionária. Noutras palavras: a classe dominante continua detendo a maior parte do poder (em suas variadas dimensões) e a massa dos trabalhadores não coloca como sua tarefa imediata mudar de conjunto esta situação. Como diria o velho russo: os de cima continuam governando como antes e os de baixo ainda aceitam ser governados como antes, embora estejam se tornando mais inquietos e insatisfeitos.

Não devemos confundir a atual insatisfação com o governo FHC e o desencanto com o programa neoliberal, com uma situação de contestação aberta e prática à ordem capitalista.

Exatamente por isso, o centro de nossa tática para 2002 é ganhar o governo federal através da disputa eleitoral e não "tomar o poder". Por isso mesmo, nosso programa deve tratar das medidas necessárias para que um governo popular, eleito, melhore, rápida e radicalmente, a vida do povo. O que propomos, portanto, é ganhar as eleições com um programa de ruptura com o neoliberalismo, não com um programa revolucionário contra o capitalismo.

Outra questão é saber o que ocorrerá, no país, quando um governo popular perseguir aqueles objetivos e implementar aquelas medidas. Se isso acontecer, as classes dominantes –pela primeira vez na história do Brasil— não conseguirão mais governar como antes.

Os que criticam nosso programa por ser "revolucionário" ou "socialista", na verdade temem isto. Preferem um governo de esquerda que governe como as elites governariam, ou pelo menos em acordo com parte do grande capital. Imaginam que, agindo assim, evitarão que os "mercados" desestabilizem o governo popular. Pensam que adotar um programa radical seria mexer na onça com vara curta.

Não aprenderam nada da Argentina, onde o grande capital não poupou nem mesmo um governo que havia prometido, durante a campanha eleitoral, que não mexeria no modelo. Não percebem que os radicais são apenas o bode na sala.

Mas o mais divertido, quando olhamos a atitude dos moderados, é refletir sobre as voltas que o mundo dá. Na história do movimento socialista mundial, grande parte da esquerda revolucionária rejeitou o caminho eleitoral como atalho para o socialismo. E grande parte da esquerda reformista sempre explorou esta possibilidade, seja na forma mais "ingênua" (obter uma maioria social-democrata nos parlamentos), até a forma mais sofisticada do Partido Socialista Chileno e sua "área de propriedade socialista".

Pois vejamos: no Brasil, a direita do movimento socialista utiliza um argumento aparentemente de esquerda (para chegar ao socialismo é preciso de uma revolução) para justificar uma postura de direita (nas eleições não vamos falar de socialismo). E ainda querem se apresentar como os herdeiros do que de melhor o PT construiu ao longo dos últimos 21 anos. Deveriam ler, pelo menos, as resoluções do 5º  e do 6º encontros nacionais.












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