quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A política externa do governo Lula


 
A política externa do governo Lula é um tema sobre o qual existe aguda controvérsia política e acadêmica. Este texto não pretende resenhar esta controvérsia, limitando-se a apresentar um roteiro para o debate da estratégia e dos dilemas da política do governo Lula no terreno internacional.

Contexto

As forças de esquerda venceram as eleições presidenciais de 2002 com um programa de “transição” do neoliberalismo para um capitalismo “produtivo”. Tratava-se de superar as causas e efeitos da “década perdida” dos anos 1980 e da década neoliberal dos anos 1990, que provocaram redução da dimensão produtiva e planejadora do Estado, resultaram numa inserção subordinada na chamada globalização e na ampliação da desigualdade social, aprofundando as características fundamentais da sociedade brasileira (dependência, desigualdade e conservadorismo) e bloqueando o dinamismo econômico desenvolvimentista, que durante décadas serviu de “válvula de escape” para as contradições sociais brasileiras.

De 2003 até 2005, o governo Lula adotou uma estratégia de transição baseada na conciliação com os pressupostos neoliberais. Em seguida, adere progressivamente ao desenvolvimentismo, anunciado no segundo turno das eleições presidenciais de 2006, cristalizado no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado em 2007 e reforçado no anúncio do marco regulatório do Pré-Sal, em 2009.

A política externa antecipou este movimento progressista realizado pelo conjunto do governo Lula, estando desde o início sob hegemonia de concepções fortemente críticas ao neoliberalismo e a hegemonia dos Estados Unidos. Colaborou para isto a existência, no Itamaraty, de uma corrente nacionalista, desenvolvimentista e pró-integração regional, a militância internacional do Partido dos Trabalhadores e do próprio presidente Lula, bem como as próprias características do país e o porte de algumas de suas grandes empresas, incompatíveis com o molde estreito concebido para nós pelo neoliberalismo.

O governo Lula foi, desde o princípio, não apenas parte integrante, mas também forte protagonista da onda regional de governos progressistas e de esquerda. Iniciada em 1998, com Hugo Chavez, esta onda foi produto de diversas circunstâncias, com destaque para: a) a desatenção relativa dos Estados Unidos para com seu pateo trasero; b) os efeitos danosos do neoliberalismo, inclusive sobre os partidos de direita; c) o acúmulo de forças por parte da esquerda, especialmente na combinação entre luta social e luta eleitoral.

Todos os governos progressistas e de esquerda eleitos desde 1998 têm buscado enfrentar três grandes problemas: a) a “herança maldita” recebida do neoliberalismo, das ditaduras, do desenvolvimentismo conservador e até do passado colonial (como na Bolívia); b) a oposição das classes dominantes locais, que questionam inclusive a legitimidade e o caráter democrático de governos que busquem alterar os níveis abjetos de concentração de riqueza e renda; c) a influência dos interesses metropolitanos, europeus e estado-unidenses, sobre a política, os mercados e as riquezas nacionais.

Frente a estes três grandes problemas, os governos de esquerda e progressistas vem tentando implementar, com maior ou menor sucesso, um programa baseado no tripé igualdade social, democratização política e soberania nacional, objetivos que são perseguidos através de diferentes estratégias e velocidades.

A possibilidade maior ou menor de êxito dos governos de esquerda e progressistas é diretamente proporcional à persistência de uma correlação latino-americana favorável, bem como ao sucesso da integração regional.

Coexistem no continente americano quatro “padrões” de integração: a) o de subordinação aos EUA, expresso na defunta Alca e nos tratados bilaterais de “Livre Comércio”; b) os acordos sub-regionais, como o Mercosul; c) a Alba; d) a Unasul.

O governo Lula tem impulsionado a integração regional, através do eixo Argentina-Brasil-Venezuela, transitando do “padrão” Mercosul para o Unasul, que envolve variáveis comerciais, de infra-estrutura, coordenação macro-econômica, sociais, culturais, de segurança e defesa, bem como políticas.

O sucesso da Unasul exige: a) a cooperação entre governos que são adversários políticos e ideológicos, o que por exemplo exige evitar rompimentos com Colômbia e Peru; b) o compromisso efetivo das principais economias da região, um dos motivos pelos quais é fundamental que o Senado brasileiro aprove a entrada da Venezuela no Mercosul; c) fazer prevalecer o interesse de Estado, por sobre a dinâmica das grandes empresas privadas brasileiras, que desenvolvem uma política internacional própria, que pode colocar em risco os objetivos estratégicos do desenvolvimento com integração; d) a institucionalização cada vez maior do processo, inclusive com a constituição de organismos eleitos diretamente pelo voto popular.

A política externa do governo Lula se desenvolve nos marcos de uma situação mundial que poderíamos resumir como sendo de crise & transição. Crise do ideário neoliberal, num momento em que o pensamento crítico ainda se recupera de 30 anos de defensiva; crise da hegemonia estado-unidense, sem que haja um hegemon substituto, o que estimula a formação de blocos regionais e alianças transversais; crise do atual padrão de acumulação capitalista, sem que esteja visível qual será a alternativa sistêmica. Noutras palavras, uma situação em que os modelos antes hegemônicos estão em crise, sem que tenham emergido claramente os modelos substitutos.

Um elemento central desta situação mundial é a crise do capitalismo neoliberal, na qual convergem uma crise clássica de acumulação, o esgotamento da “capacidade de governança” das instituições de Bretton Woods, os limites do consumo insustentável da economia estado-unidense e a dinâmica da especulação financeira.

Mesmo atingidos pela crise, as classes dominantes dos países centrais concentram imenso poder econômico, militar e político, que têm utilizado para retardar ou mesmo evitar reformas que incidam nas causas estruturais da crise. Nestas condições, o governo Lula combina três movimentos:

a) colabora na discussão e implementação de medidas anti-crise, de reforma das instituições internacionais e do padrão econômico, mesmo que sejam medidas reconhecidamente limitadas e parciais, para evitar um colapso generalizado, que teria efeitos catastróficos também na “periferia” do mundo;

b) impulsiona a cooperação entre potências “emergentes”, através da “geometria variável” especialmente com China, Rússia, Índia e África do Sul, na tentativa de criar laços econômicos, sociais, políticos, militares e ideológicos que permitam a convivência, sem subordinação ou dependência, com a (no médio prazo) decadente hegemonia dos Estados Unidos e União Européia.

c) acelera, no âmbito regional, as medidas que visam institucionalizar a integração regional, reduzir a ingerência externa, as desigualdades & assimetrias, seja para atuar internacionalmente como bloco, seja para aproveitar melhor as potencialidades da América do Sul.

Antes mesmo da eclosão da crise, o governo brasileiro já mantinha ativa política multilateral, atuando em espaços como o G-20 (o comercial e o financeiro), o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), a ASPA (América do Sul – países árabes), a ASA (Conferência América do Sul/África), os BRICs etc. Nesta mesma direção, o governo Lula milita por uma cadeira permanente do Brasil no Conselho de Segurança da ONU e tem disputado a direção de vários organismos internacionais. O papel de destaque que assumiu no G20 (G8 ampliado) não constitui, portanto, algo inesperado.

Nestes foros internacionais, o governo brasileiro tem defendido posições afinadas com as orientações tradicionais da diplomacia brasileira, tais como o multilateralismo e a paz, mas cada vez mais temperadas pela explícita disposição de preservar a margem de manobra do Brasil.
Objetivamente, a política externa do governo Lula faz o Brasil competir com os Estados Unidos. Comparada com outras potências, trata-se de uma competição de baixa intensidade. Mas, por se dar no entorno imediato, possui imensa importância geopolítica e tem potencial para, no médio prazo, constituir-se em uma ameaça para os Estados Unidos.
Isto é confirmado quando se constata que, mesmo depois do arquivamento da Área de Livre Comércio das Américas e apesar da promessa de uma nova política para América Latina, o governo Obama manteve a política de acordos bilaterais e de exibição de força (IV Frota, bases militares na Colômbia, golpe em Honduras, reafirmação do bloqueio contra Cuba).
A atitude dos Estados Unidos fortaleceu a decisão de renovar o equipamento das forças armadas brasileiras. E faz da OEA, cada vez mais, ponto de encontro institucional entre dois blocos regionais existentes num mesmo continente, um dos quais pode ampliar futuramente seu escopo institucional, transitando de Grupo do Rio para a já proposta Organização dos Estados Latino-americanos.
Mas o sucesso na luta contra a ingerência externa e a constituição de um bloco fortemente ativo no cenário internacional depende, no limite, de uma política sustentável e continuada de redução das desigualdades & assimetrias regionais. O que exige forte investimento brasileiro, país que detém aproximadamente metade do território, da população e do produto interno bruto sulamericanos.
As concessões feitas à Bolívia e ao Paraguai, a disposição permanente de negociar com a Argentina, a insistência na cooperação com a Venezuela, entre outros, são passos importantes, que antecipam uma política mais ampla, que já foi chamada (inadequadamente) de Plano Marshall para a América do Sul.
Para que haja condições internas para a implementação desta política, é preciso uma maioria política que perceba as vantagens que o desenvolvimento da América do Sul traz para o desenvolvimento brasileiro, motivo pelo qual cabe ao Brasil assumir parte importante dos investimentos necessários para tal integração, especialmente no âmbito da infra-estrutura.
Ao mesmo tempo, para que a implementação desta política seja bem recebida pelos países vizinhos, é necessário afastar o temor de que esteja em marcha um sub-imperialismo brasileiro. Considerando que as assimetrias econômicas só serão superadas no médio prazo, afastar aquele temor supõe não apenas investimentos “a fundo perdido”, mas principalmente um nível superior de institucionalidade regional, através da UNASUL, do Conselho de Defesa Sul-Americano, do Banco do Sul etc.
Dilemas
Viveremos um período mais ou menos prolongado de instabilidade internacional. No curto e médio prazos, esta instabilidade está vinculada à crise e ao declínio da hegemonia norte-americana. No longo prazo, corresponde à crescente contradição entre a “globalização” da sociedade humana versus o caráter limitado das instituições políticas nacionais e internacionais.

Estas três dimensões da instabilidade fazem com que seja mais urgente e difícil construir alternativas. O velho modelo não funciona adequadamente, mas continua imensamente forte, enquanto os novos modelos econômicos e políticos estão surgindo, mas ainda não conseguem se impor. Esta situação aponta para impasses prolongados e/ou soluções intermediárias, temporárias e ineficazes.

Para enfrentar este longo período de instabilidade, o Brasil necessitará acelerar os processos de integração regional, constituir um diversificado sistema de alianças internacionais e pressionar por reformas nas instituições internacionais (a começar pela moeda), seja para reduzir a hegemonia dos Estados Unidos e Europa, seja para fortalecer as instituições vinculadas à cooperação para o desenvolvimento.

Frente a estes desafios gigantescos, a política externa do governo Lula deve ser uma política de Estado. Mas parcela das classes dominantes rejeita os fundamentos desta política, preferindo reduzir a importância da integração regional, menor protagonismo multilateral e maior subordinação aos interesses dos Estados Unidos. Isto significa que, no curto prazo, a continuidade da atual política externa dependerá do resultado das eleições presidenciais brasileiras, que vão ocorrer em outubro de 2010.

Caso a oposição de direita eleja o próximo presidente do Brasil, isto terá efeitos diretos e imediatos na correlação de forças regional, resultando no adiamento dos processos de integração e na interrupção do reformismo democrático-popular que desde 1998 ganhou espaço na América Latina. Em graus diferentes, o mesmo dilema se joga nas eleições presidenciais do Uruguai, Bolívia e Chile.

Apesar de ainda não ser uma política de Estado (não por sua concepção, mas pela rejeição de parte das classes dominantes), a política externa do governo Lula tampouco é uma política de partido. A rigor, a atual política externa do Brasil corresponde aos interesses estratégicos de uma “potência emergente”, interesses que no governo Lula comportam uma dupla dimensão: empresarial e capitalista, mas também democrático-popular. É esta dupla dimensão que explica aspectos contraditórios da política externa (e também interna) do governo Lula, como se viu na influência que o agro-negócio teve nas posições adotadas pelo Brasil nas negociações da Rodada Doha.

Esta constatação exige, dos partidos de esquerda integrantes do governo Lula, a elaboração de uma interpretação autônoma da situação internacional e um trabalho constante de acompanhamento da política externa, defendendo-a dos ataques da oposição de direita, evitando que nela predominem os interesses privados e “sub-imperialistas”, estimulando um viés latino-americano e caribenho, reafirmando a caracterização imperialista da política das metrópoles e o objetivo socialista da esquerda.

Há nos partidos de esquerda diferentes interpretações sobre a caracterização da crise internacional (financeira, econômica, de hegemonia, de acumulação), sobre o momento em que estamos da crise (fim do início, início do fim), sobre os impactos do imenso endividamento público dos países centrais, sobre a possibilidade de construir uma nova “arquitetura” internacional, nos marcos da hegemonia declinante dos Estados Unidos, bem como diferentes opiniões sobre a natureza do mundo pós-crise.

Para a finalidade deste texto, a questão mais relevante é como tratar as contradições no processo de integração regional.

O ambiente progressista e de esquerda existente entre 1998 e 2008 criou condições mais propícias para que cada processo nacional seguisse seu próprio curso, oferecendo possibilidades imensas e em certo sentido inéditas para todos os programas e estratégias de esquerda. Neste sentido, a primeira tarefa da esquerda latino-americana é preservar esta correlação de forças continental.

Ocorre que, quando forças de esquerda conseguem chegar ao governo central de um determinado país, o fazem com um programa baseado no tripé igualdade social, democratização política e soberania nacional. E a defesa da soberania nacional não se faz apenas contra as "metrópoles imperialistas", envolve também administrar os conflitos entre países da região.

Estes conflitos não foram "inventados" pelos atuais governos, sendo geralmente herança de períodos anteriores, inclusive do desenvolvimento dependente e desigual ocorrido na região. Na maioria dos casos, não poderão ser superados no curto prazo: por terem causas estruturais, só poderão ter solução no longo prazo, nos marcos de um adequado processo de integração regional. A exacerbação destes conflitos regionais teria, como subproduto, o dissimular das contradições muito mais relevantes com as metrópoles.

Portanto, é estratégico impedir que estes conflitos se convertam em contradição principal pois, se isto acontecer, a correlação de forças latino-americana se alterará em favor da ingerência externa.

É sabido que os governos progressistas e de esquerda da região trilham o caminho do desenvolvimento e da integração, adotando diferentes estratégias e com diferentes velocidades. Logo, é preciso compatibilizar as múltiplas estratégias nacionais, com a construção de uma estratégia continental comum, que preserve a unidade com diversidade.

Politicamente, é preciso manter a harmonia do eixo Argentina-Brasil-Venezuela, apesar das distintas estratégias das forças progressistas e de esquerda em cada um destes países. Estruturalmente, a solução dos conflitos regionais supõe uma redução da desigualdade, não apenas dentro de cada país, mas também entre as economias de nosso subcontinente. A institucionalidade da integração, tanto multilateral quanto as relações bilaterais, tem que estar sintonizada com este propósito.

A redução da desigualdade em cada país supõe enfrentar a "herança maldita" e realizar reformas sociais profundas. Mas isto não é suficiente para eliminar as disparidades existentes entre as economias, objetivo que exige combinar, no longo prazo, medidas de solidariedade, intercâmbio direto e também medidas de mercado.

Como já dissemos antes, coexistem na região quatro “modelos” de convivência: o subordinado aos EUA, os acordos regionais, o modelo Alba e o modelo Unasul.

Independente do que possamos pensar acerca de sua sustentabilidade interna, natureza dos acordos firmados, materialização efetiva, efeitos nos países receptores, o modelo Alba é extremamente meritório. Mas não existe correlação de forças, mecanismos institucionais e situação econômica que permitam ao conjunto dos países da região adotar os princípios solidários da Alba e/ou operar de maneira semelhante ao governo venezuelano. Em essência, porque não é sustentável que países capitalistas mantenham uma política externa de viés socialista, especialmente quando ela é sustentada por recursos provenientes da venda de combustível aos Estados Unidos.

Por isto, embora toda alternativa de esquerda deva envolver um componente de solidariedade, a dimensão principal dos acordos na atual etapa de integração latino-americana tem que ser a dos acordos comerciais, econômicos e institucionais, envolvendo governos, empresas públicas e/ou privadas. Mas para que disto resulte fortalecida a integração, o Brasil é chamado a financiar um plano de desenvolvimento para a América do Sul. Assumir esta perspectiva inclui superar positivamente os impasses na constituição do Banco do Sul, generalizar o comércio com moedas locais e reforçar a perspectiva de criação de uma moeda regional.

O financiamento de um plano regional de desenvolvimento por parte do Brasil é uma necessidade urgente, pois a partir de 2009 novas variáveis vem incidindo na conjuntura regional. A crise criou dificuldades para a maioria dos governos progressistas e de esquerda existentes na América Latina, reduzindo sua margem de manobra, interrompendo processos de crescimento e revertendo a distribuição de renda. A crise ocorreu num contexto de contra-ofensiva de direita, que inclui desde vitórias eleitorais (como no Panamá), manipulação conservadora dos temas de segurança pública e defesa (México e Colômbia), até a retomada do golpismo (Honduras). Neste cenário, embora tenha mantido diretrizes fundamentais do governo anterior, a nova retórica do governo Obama e alguns acenos concretos permitiram ao governo norte-americano recuperar margem de manobra na região.

A crise internacional, portanto, veio acompanhada de dificuldades táticas, entre as quais as debilidades do processo de integração. Mas, ao mesmo tempo e como noutros momentos da história da região, as grandes crises internacionais oferecem oportunidades estratégicas. Hoje a esquerda é parte de importantes governos da região e pode, não apenas denunciar, mobilizar e pressionar, mas também combater os efeitos da crise, aprofundar as mudanças estruturais que nossas sociedades requerem e acelerar o processo de integração.

Neste cenário, o cada vez maior protagonismo global do Brasil não pode resultar numa diminuição de seu compromisso com a integração regional, seja porque este protagonismo é fortemente vinculado aos sucessos latino e sul-americanos, seja porque as características geopolíticas do país e de sua política externa conferem ao Brasil posição insubstituível no processo de integração regional. 

Esta análise foi um subsídio ao seminário “Política externa dos governos progressistas do Cone Sul: convergências e desafios”, realizado em 2009 pela Rede de Fundações Progressistas do Cone Sul, em parceria com a Fundação Friedrich Ebert (FES).

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